Supondo que ainda existam «carreiras» nos nossos percursos profissionais quase completamente proletarizados, há um ponto em que a idade da reforma se aproxima e se começa a pensar nisso. Eu sempre quis continuar a trabalhar para além da idade legal, porque tenho a sorte de gostar muito do que faço. E sempre disse que me reformava logo que me sentisse desconfortável no trabalho. Mas também imaginei sempre que ia abrandar e ter tempo para ensinar aos outros o que julgo saber ou fazer melhor. Contudo, neste «fim de carreira», parece que acabo envolvido em demasiadas coisas, parece que o tempo passa depressa demais e até parece que os meus colegas não querem aprender… ou, pelo menos, não comigo. Se somos «pares», percebe-se porquê, precisaria para tal de ter um altíssimo estatuto profissional, que não será o meu caso. E por não ter esse estatuto, seria apenas mais um com a mania de que o mundo quer saber o que nós sabemos e o que temos pretensão de ensinar.
Nada pior que um velho com manias!
Tudo no mundo do trabalho está preparado para nos descartar em «fim de carreira», é essa a forma de organização da vida profissional e de uma sociedade levada a acreditar piamente em prazos de validade. Chegar lá também nos faz ir percebendo aquilo que desde sempre devíamos ter sabido: que nos julgam (e talvez sejamos) dispensáveis, porque as instituições sempre nos sobrevivem.
O que eu julguei dever partilhar também não me parece agora assim tão importante: por exemplo, gostava de ensinar a desenhar exposições, criar guiões que ensinem alguma coisa a alguém. Estamos todos tão rodeados de objetos, de imagens, de textos, de informação, que qualquer exposição estática tem – em meu entender –muita dificuldade em competir com as outras formas de informação ou de entretenimento. É essencial criar uma narrativa suficientemente «agarrada» ao que se expõe, criando um guião que faça sentido. E que ensine algo de novo, que mostre ao visitante um ponto de vista inesperado. Talvez só 5% dos visitantes de uma exposição bibliográfica, digamos, sobre a «Ciência durante a Renascença», sabem encontrar um sentido e tirar proveito de uma série de livros antigos espalhados numa vitrina. Se queremos agarrar os outros 95% temos de contar-lhes uma história, de criar uma narrativa que os livros ou os mapas ou os objetos ilustrem visualmente.
Durante dezenas de anos, visitei exposições organizadas por gente cultíssima, que sabia imenso dos temas que mostravam, mas que resultavam numa justaposição de objetos com uma legendagem técnica. Eu, porque devo ser um iluminado e dominava mais ou menos o tema, conseguia por vezes (nem sempre) perceber as escolhas e as ligações entre os livros/objetos expostos, o que quer dizer que existia um «discurso» ou uma «narrativa» na cabeça do curador. Mas que aquele nunca partilhava com o visitante porque talvez a exposição não fosse feita para o público, imagino que só para os outros cultíssimos sabedores do mesmo tema, seus pares.
Atitude insuportável, exposição inútil!
Porque não me vejo a partilhar a minha experiência com os colegas de trabalho, aqui onde ninguém me lê posso deixar tranquilamente estas reflexões, que constituirão o meu único «testamento profissional» no que respeita a organizar exposições bibliográficas e não só.
A primeira questão, já o disse, é a necessidade de ter uma narrativa. Existindo uma narrativa, tem de haver um sentido de «leitura». Nunca ninguém da área da museologia me conseguiu dizer se existe alguma «regra» para abordar uma sala de exposições: começa-se a ver pela direita ou pela esquerda? Não existindo tal regra (ou não sendo conhecida de todos), temos de recorrer a sinalização que o indique claramente e que pode ser um painel único (inicial) colocado onde a exposição se deve começar a «ler». Ou pode ser numerar as vitrines com uma sinalização vertical, que se perceba logo para toda a sala, desde a entrada. Se a exposição for organizada cronologicamente, como é muitas vezes o caso, tem necessariamente de começar-se pela esquerda porque, na nossa cultura, lemos da esquerda para a direita.
Estabelecido que existirá um texto e que já sabemos onde começar a leitura, o guião deve dispor toda a informação de uma forma equilibrada no espaço disponível. Se há conceitos que permeiam todo o material exposto, eles devem ser explicados no início, para só termos de os lembrar mais tarde quanto tivermos de recorrer de novo a eles. A leitura de uma exposição é como ir sobrepondo camadas de informação. Portanto, devem mostrar-se primeiro os materiais mais simples e depois os mais complexos. Se o guião se divide em «capítulos», devemos criar núcleos correspondendo a uma unidade expositiva facilmente percebida, que pode ser uma vitrine ou um conjunto delas.
Dentro de cada núcleo, os objetos devem dispor-se segundo uma estética persistente em toda a exposição: a legendagem técnica deve estar sempre na mesma posição em relação à peça a que se refere, seja em cima e à esquerda ou em baixo e à direita. E sempre à mesma distância, porque isso cria inconscientemente uma métrica que o visitante percebe e que o fará procurar a informação relevante no sítio certo. Dentro de cada vitrine, a legendagem será sempre horizontal, num local de leitura fácil (atenção a fontes, tamanhos e cores) e sem sombras. As legendas devem ser o mais concisas possível e de formatos sensivelmente próximos, nada pior do que uma legenda de dez linhas aqui e uma de cem a seguir. Provavelmente, a peça de cem linhas tem um texto maior porque será mais interessante (ou foi mais estudada), mas uma legenda enorme faz com que não se leia sequer.
E fico-me por aqui para não ultrapassar os 6 mil carateres. Quando compilarem as minhas obras completas, isto será provavelmente o único registo que fica do que julguei aprender em mais de cem exposições bibliográficas, feitas em bibliotecas públicas, nacionais e universitárias, durante 35 anos.
Bom proveito.