Esgueira-se uma dor em surdina, quase secreta, pelas arcadas dos seus dentes de velho. Com manha, faz-se sentir mal ele a esquece: uma pontada num canino, um incisivo cruelmente sensível, o fantasma de um pré-molar há muito partido. A sonata de desconfortos em notas esparsas, aqui e ali a combinarem o coro de um acorde dissonante e infeliz.
Meia hora de sofrimentos em miniatura, talvez a última vingança do bicho sacrificado e exposto em pedaços na mesa posta para um. Imaginou o carneiro a entrar no abatedouro, endurecendo tendões e músculos para não se deixar ir sem a última represália dos devorados. Os segundos de conhecimento do que ali vinha, um instinto bruto de recusa da morte, o escoucear, os balidos, os músculos retesados para lá do fim. Bravo.
E ele? Como poderia saborear a agonia, agora que nela pensara? Demasiado rija, renitente à mastigação, ao prazer dos sentidos. E algo de repente a mordê-lo, com um choque que se propaga pelos ossos, até aos ouvidos e mais adentro: um pedaço de coisa em pedra, de algo nunca destinado a ser comido. Sopesa-o com a língua, isolado das notas de refogado, dos ecos em hortelã-pimenta: será fragmento de uma apófise do bicho-comida ou de um dente seu, estilhaço da maquinaria devoradora do bicho-comedor? A quem pertenceria o resto da fractura?
Um gole de vinho para empurrar o medo, o pedaço sem nome, o fantasma da mutilação quase insignificante (quase, só quase) de tão repetida. Amanhã. Amanhã examinará o fundo da sua boca, com a vista renitente, com os dedos; haverá ali uma nova cratera, mais uma linha de clivagem a separá-lo do seu corpo, dos dias em que este o acompanhava como um duplo aquiescente; sem uma dúvida, sem um estremecimento de nojo, de queda, de perigo?
Boca fechada, imóvel. Um baú cioso do seu tesouro de esquírolas, lascas de carnes antigas e lesões a florescer sobre gengivas em fuga. Boca fechada, mas sem pressão, sem nada que leve o marfim amarelecido das presas a premir as cordas daquele piano de nervos desafinados.
Talvez lavar o pecado com aguardente: o fogo da vida ardendo a penitência do predador de dentes moles. Ou não. Há algo de bom, de justo, neste padecimento. Mas há mais: uma notificação de persistência, o alívio de ainda sentir as coisas duras da vida. “Um cordeiro sacrificarás pela manhã, e o outro cordeiro sacrificarás à tarde” – um preço justo pelo reatar de nós com o mundo, mesmo com a canga das dores e da decadência. Ele retira a cabeça das mãos e os cotovelos da mesa. Encara de novo o prato e começa a roer os ossos.