Número 12

16 de Outubro de 2021

CORPO, SAÚDE E BELEZA

Frankenstein

ARACNE

“To examine the causes of life, we must first have recourse to death.”

Mary Wollstonecraft Shelley, Frankenstein.

Animar matéria inanimada: eis os desígnios de Victor Frankenstein. Este desígnio grandioso parece alimentado por desejos infantis, uma curiosidade insaciável de perceber o mundo vivo. Victor vê-se como um ser luminoso, capaz de inundar a escuridão em que vivemos. Apenas tem como bloqueio uma questão de tamanho: não gosta de trabalhar com minúcias. Eu compreendo. Uma vez, no laboratório, deparei-me com a dificuldade que alguém dos baldes da pecuária tem com os tubinhos da biologia molecular. Victor decide ser pai duma nova espécie e, para trabalhar à vontade, fez a coisa em grande: 243,84 cm. O conto é conhecido pelas suas competências de parentalidade que, no mínimo, deixam muito a desejar.

Olhando para os relatos que a Mary nos deixa, Victor parece ter uma personalidade obsessivo-compulsiva: é perfecionista, apega-se muito às pessoas, tem poucos amigos, um pensamento preto e branco e demasiada devoção ao trabalho, além de ciclos de ansiedade e depressão. Não me surpreenderia se no processo de fabrico do dito monstro, tivesse acumulado muitas caixas[1]. O que faz o nosso Victor perante o seu sucesso? Foge, porque a criatura é feia. Detém-se em apreciações estéticas. A pele é amarela, os lábios pretos, e quando se mexe ainda fica pior. Culpa a poesia heroica de Grécia e Roma, e qualquer contacto com o trabalho prévio é insuportável. Mas à medida que os eventos trágicos se desenrolam, Victor é consumido por remorsos. Tal não o impede de evitar a todo o custo ouvir o que a criatura tem para lhe dizer.

As primeiras experiências do monstro são sensoriais. Fala dos sentidos e necessidades que não foram atendidas. Afetos. Sofre atração e repulsa, prazer e dor. Sobrevive completamente só. Vê a miséria nos humanos, sem a compreender inteiramente: de que se queixam, quando têm casa, calor, comida, roupas, e a companhia uns dos outros? A criatura torna-se o nosso antropólogo e aprende a nossa linguagem. Descobre a pobreza e o querer. Descobre, numa poça, que é feio. E mortifica-se.

Aqui reside a chave de toda a história: a mortificação. Uma sensação descrita por quem a experimenta como um terror profundo, a dissolução do ser. Mas sobrevive. Não se separa em peças. Sobrevive para compreender e tolerar, com tristeza, a ambiguidade humana. Aprendeu as expectativas não cumpridas da parentalidade:

“But where were my friends and relations? No father had watched my infant days, no mother had blessed me with smiles and caresses; or if they had, all my past life was now a blot, a blind vacancy in which I distinguished nothing. From my earliest remembrance I had been as I then was in height and proportion. I had never yet seen a being resembling me, or who claimed any intercourse with me. What was I? The question again recurred, to be answered only with groans.”

A criatura aprende a ler e começa a ser povoada por figuras. Sofre tremendamente com a rejeição e a solidão. Sente-se injustiçada perante a incapacidade de atrair atenção feminina, e decide punir uma mulher por se sentir roubado de tudo o que ela podia dar.

Ah, o nascimento da malignidade. A transferência da culpa para ela. A exigência da mulher como um direito.

É assim que a criatura sem nome se torna no primeiro incel. É neste momento que agradeço a robótica e as Stratocaster [2]. Mas ele é específico: uma companheira da minha espécie, com os mesmos defeitos — ou seja, feia, mas simpática. O seu sonho é uma espécie de amor sem cabana, viverem na América do Sul de bagas e bolotas (quem nunca?).

Victor acha a ideia sedutora: enviar o monstro para longe da Europa, na companhia de uma fêmea expiatória, resolve-lhe muitos problemas. Mas o destino da criatura e do criador parecem ligados. Enquanto a criatura deseja ardentemente o contacto com humanos que o rejeitam, Victor torna-se um farrapo misantropo. A salvação de ambos parece residir na existência de companheiras capazes de lhes dar atenção e descanso. Mas enquanto a criatura se considera merecedora de tal destino amoroso, Victor não se tolera a si mesmo. Tolhido por remorsos mata a nova criatura prestes a ganhar vida, por vir a ter vontade própria e afetos e poder não subscrever o pacto feito antes do seu nascimento. No entanto, continua firme na sua atroz falta de empatia e compaixão para com o monstro, que demoniza constantemente, e com quem entra em conflito mortal. Na falta de amor, o ódio alimenta-se do sofrimento, e entram numa dança macabra até ao fim.

Dizem as feministas que aprecio: o desafio da humanidade não está em prevenir monstros, mas sim em aprender a amá-los. Incapaz de o fazer, Frankenstein mortificou o monstro para não se mortificar a si mesmo. Que tristeza. Que cobardia disfarçada de glória. Quem sabe, se ao aceitar a sua própria vergonha, não conseguiria a sua salvação.


Berta apresenta Aracne a Joel-Peter Witkin. Fotografia de Candida Erêndira.



[1] https://www.youtube.com/watch?v=pWqRCtboGaw

[2] https://www.youtube.com/watch?v=fD2briZ6fB0