Desde o Evento de Carrington, em 1859, que sabemos da existência destes fenómenos e de como nos podem afetar. Com o evoluir da ciência, fomos descobrindo, ao longo das últimas décadas, que seria apenas uma questão de tempo, de probabilidades, até que algo assim acontecesse de novo. Essa vez chegou. Se no século dezanove o acontecimento passou despercebido à quase totalidade da população mundial, uma vez que as redes elétricas e de telecomunicações estavam ainda na sua infância, hoje não é esse o caso. As ejeções de massa coronal são inofensivas para os nossos organismos, mas podem provocar sérios danos a este tipo de infraestruturas e equipamentos, o que, numa sociedade global tão dependente do transporte de energia e dados, implicará algum grau de rutura nas nossas vidas e nas nossas economias. Uma vantagem que temos hoje, em relação ao século dezanove, é a de podermos antecipar as consequências e mitigar os danos. Esta ejeção de plasma foi detetada há poucas horas e levará mais cerca de quatorze a chegar ao nosso planeta. Assim, será necessário desligar todos os sistemas suscetíveis de serem afetados e colocar os equipamentos em modo de segurança. Apelamos a que os cidadãos e as cidadãs se preparem regressando serenamente aos seus lares, nos quais deverão permanecer até a crise solar ter passado, o que deverá acontecer num prazo de aproximadamente seis horas após o seu início. Daqui a um dia, ou pouco mais, a normalidade começará a ser restabelecida. No entanto, e uma vez que não é possível garantir a integridade de todos os sistemas afetados — redes físicas, servidores, satélites —, é possível que a normalidade global só seja possível passado algum tempo, pelo que é recomendável que todas as famílias disponham de mantimentos e água para alguns dias. Acima de tudo, devemos, todos e todas, evitar o pânico para que, às mais que certas consequências económicas que se avizinham, não se some um número de vítimas superior ao previsto para esta situação-tipo, em particular numa altura em que os próprios serviços hospitalares e as forças de segurança terão a sua operacionalidade limitada.
Lopo não ouviu o comunicado das autoridades nem soube das debandadas que se lhe seguiram. Desde que abandonara a cidade e o emprego como gestor de plataformas que não via televisão, não ouvia rádio, não acedia à internet. As exceções eram as idas ao café-mercearia da aldeia mais próxima, que tinha a televisão sempre ligada no futebol ou na gosma da criminalidade. Fora esses momentos, os seus dias no território de baixa densidade eram preenchidos pela horta, as árvores de fruto e alguma reparação ocasional na sua casa de arquitetura vernacular. Desligar-se do mundo, conquistar a autossuficiência alimentar e limitar a socialização tinham diminuído a intensidade do grito, ao ponto de, por vezes durante horas, deixar de o ouvir. Mas quando naquele dia viu o vizinho da casa imediatamente a norte no frenesim de encher o carro, não resistiu a ir ter com ele e perguntar-lhe o que se passava. Respondeu-lhe o vizinho que um acontecimento cósmico que não sabia explicar, que tinha sido anunciado na televisão, ia fechar o mundo por um dia. Para onde fugia, então, perguntou-lhe Lopo. O homem estacou por uns segundos, subitamente desamparado, virou costas, meteu-se no carro e fugiu para nenhures. Lopo julgou compreendê-lo e penitenciou-se pela pergunta: a fuga, como ele bem sabia, podia muito bem ser o objetivo.
Já tinham passado três dias e não havia sinal de reposição da normalidade. O café-mercearia continuava fechado, o trânsito de motoretas tinha cessado e a iluminação pública permanecia desligada. Talvez, pensou, a civilização tivesse mesmo acabado e a possibilidade da anomia infundiu-o com o consolo da razão. Decidiu então aproveitar a meia-noite solar para subir ao cabeço em frente à sua casa. A ausência de poluição luminosa constituía a oportunidade ideal para apreciar o brilho mortiço do gegenschein sobre a vastidão do hinterland. Lá, imerso no ruído dos notívagos, o seu silêncio pessoal reinava absoluto, ele era um sonâmbulo no campo minado da paz. Mas logo o sossego foi substituído pelo sobressalto de um brado distante que provinha da direção da sua quinta. Como um gafanhoto, levantou-se e saltou pelo cabeço até conseguir avistar os acontecimentos. Lá em baixo. um grupo de pessoas munidas de tochas pilhavam a sua horta enquanto a casa do vizinho fugidio ardia. A vida na cidade, concluiu, teria sucumbido ao colapso das redes de distribuição, lançando os desesperados sobre os polos de produção agroalimentar remanescentes. Avaliou a situação com frieza: a sua casa seria a seguinte e ele, mesmo com o treino que tinha, sozinho e desarmado nada poderia contra aquela multidão — e mais vagas de desvalidos se seguiriam. De imediato, maquinalmente, converteu a evidência da derrota em ímpeto para uma nova batalha, como se o que julgara ter morto ressuscitasse num repente. Ao abrigo das trevas e das herbáceas, desceu a encosta para se integrar sorrateiramente no tropel e começar a pilhar a sua própria colheita. Não o movia o propósito de se juntar a quem não poderia vencer, mas a certeza de que, quando até as couves acabassem, ainda restaria a carne humana.