Gerda Taro nasceu Gerda Pohorylle, no dia 1 de agosto de 1910, em Stuttgart, uma cidade do sul da Alemanha. A família, judeus da classe média, eram provenientes da Galicia, uma região do Império Austro-húngaro que passou a pertencer à Polónia no final da Primeira Grande Guerra. Ironicamente, a família Pohorylle, que vivia na Alemanha, falava alemão e se esforçava por dar aos filhos o que pensava ser uma impecável educação alemã, ganhou um passaporte polaco. Os Pohorylles eram comerciantes pobres, politicamente liberais. Mas ao lado, morava o tio Moritz e a tia Terra, que ajudavam nas despesas. Gerda andou num bom colégio de Stuttgart e fez o último ano numa escola Suíça, custodiada pela tia Terra. Aos 18 anos, Gerda Pohorylle era uma rapariga inteligente e linda, extrovertida e otimista, com uma educação que parecia corresponder às expetativas da tia Terra.
Mas alguma coisa corria mal. No Verão de 1929, a crise política e económica da República de Weimar, explode. O antissemitismo torna-se mais agressivo, a extrema direita mais violenta e ambiciosa, a frágil empresa do pai de Gerda afunda-se. Como último recurso, o pai aceita uma parceria num negócio em Leipzig. E Gerda acompanha-o, deixando as amizades da juventude, um namorado mais velho e a tia Terra.
Em Leipzig, ela inscreve-se numa escola de nome Gaudigschule e num clube desportivo onde pratica ténis e natação. Ambos são instituições socialistas, da tradição judaica de livre pensamento. Aí se junta a um grupo de amigos que têm em comum serem judeus, intelectualmente brilhantes e motivados politicamente para as lutas da esquerda. Algumas dessas pessoas serão marcantes na curta vida de Gerda, entre eles Willi Chardack, estudante de Medicina e que viria a ser, mais tarde, nos Estados Unidos, um pioneiro da Cirurgia Cardíaca. A sua maior amiga é Ruth Cerf, uma rapariga muito nova, da qual conhecemos algumas fotografias. Ruth, como Gerda, é aquilo que nos estereótipos racistas então em alta corresponde à categoria das lindas mulheres arianas, extremamente atraente, estudante bolseira de Gaudisgschule, aderente da União de Estudantes Socialistas. Apesar da militância, elas gostam de festas, de dançar até tarde, de conhecer pessoas novas. “Gerda é alegre, feliz, cheia das alegrias de viver. Não é uma pensadora profunda. Nem uma lutadora. Em regra leva a vida com leveza. Eu também”— disse Ruth.
Na Alemanha, o ascenso dos nazis parecia imparável. Gerda distribui panfletos anti-nazis como pendura na motoreta de Alfred Scmidt-Sas, um líder estudantil, próximo dos seus dois irmãos, Oskar e Karl, membros de um sindicato revolucionário estudantil. Em 18 de Março de 1933, com Hitler chanceler da Alemanha desde Janeiro, o incêndio do Reichstag e a derrota dos partidos democráticos, a repressão e as medidas legislativas anti semitas sucedem-se vertiginosamente. No dia 18 de março de 1933 a polícia faz uma rusga na casa dos Pohorylle, à procura dos irmãos, que se tinham posto a salvo. Gerda é presa. O pai, invocando a nacionalidade polaca, consegue a intervenção do cônsul da Polónia e, ao fim de algum tempo, “a polaca” é libertada. Mas a vida em Leipzig, para os militantes e simpatizantes de esquerda tornara-se irrespirável. Os que tinham meios para o fazer partiram. A maior parte deles para Paris. Em Outubro de 1933, Ruth Cerf partiu. E no fim do mês, com dinheiro emprestado pelos amigos de Stuttgart, Gerda passou a fronteira da Alemanha.
Em França, a situação era muito complexa. A direita desencadeou um movimento de suspeita e rejeição relativamente aos refugiados. Os que chegavam eram cultos e educados. Mas depois viriam as hordas de pobres da Europa Central e de Leste, era a ameaça que brandiam. Além do mais, os refugiados que chegavam eram esquerdistas, judeus e… alemães. A Action Française e a imprensa de direita não se cansaram de doutrinar a opinião pública com este alarme nacionalista. E as medidas dos governos, em sucessão, não pararam. De um lado a histórica tradição de acolhimento da França para com os refugiados. Do outro, a direita xenófoba e com simpatias fascistas. De um lado a Paris dos cafés da margem esquerda e das conspirações contra as tiranias, do outro medidas discricionárias anti emigrantes, restringindo a liberdade de trabalho e obrigando a apresentações periódicas na polícia.
A maior parte dos exilados eram pobres ou muito pobres e desprovidos de meios para recomeçar a vida. As mulheres encontravam trabalho como empregadas domésticas ou amas de famílias francesas da burguesia. Ruth Cerf, então com 18 anos, empregou-se como au pair numa casa do XVI ème e teve de sair, após os avanços do patriarca. Os homens vagueavam, oferecendo os seus préstimos.
Gerda conseguiu sempre manter a dignidade e o encanto. No vestuário, na aparência, nas amizades. Com graves problemas de alojamento, que partilhava com Ruth, ela encontrava o seu grupo de apoio nos exilados do Café Capoulade, boulevard Saint-Michel, junto aos Jardins do Luxemburgo. Ali reunia um grupo de gente de Leipzig em torno de Boris Goldberg, um historiador. Ali ela reencontrava Willi Chardack, uma psicanalista de nome Rosa Lenz e uma jornalista de Dresden que se tornaria sua amiga, Lotte Rappaport. Do grupo fazia parte Willy Brandt, que viria a ser, depois da guerra, chanceler da RFA.
Os outros dois cafés míticos onde se reuniam os refugiados eram La Coupolle e o Dôme.
O grupo do Capoulade realizava ações de informação sobre a situação no III Reich tentando sensibilizar a opinião pública francesa e produção de textos para envio clandestino para a Alemanha. Mas Gerda e Ruth, a braços com problemas de subsistência, e com pluriemprego, não tinham grande participação nas iniciativas.
Num desses cafés, Ruth Cerf foi abordada por um homem desgrenhado, com aspeto de vagabundo pobre e artista boémio, embora muito atraente, que lhe falou em alemão e disse ser fotógrafo e gostar de a fotografar num jardim próximo. Ruth hesitou mas acabou por marcar um encontro para o qual, por precaução, se fez acompanhar por Gerda. Foi no fim do Verão de 1934. O rapaz estranho era André Friedmann.
Tinha 21 anos e nascera na Hungria de uma família de judeus da classe média. Crescera debaixo da ditadura fascista de Horthy. No fim do secundário, farto da Hungria, fora para Berlim, estudar jornalismo e fotografia. Nessa época, Berlim era o berço escaldante do fotojornalismo. O fotojornalismo surgira na esteira do cinema, da existência de um público alargado com cultura visual e do prestígio da imagem como representação da realidade. E da evolução tecnológica, que permitira o aparecimento de uma máquina de fotografar portátil e fácil de utilizar, a Leica 1 [A] de 35mm. A notícia jornalística, para competir com a radialista, tinha de se acompanhar de imagens. Surgiram magazines ilustrados, fotógrafos de publicidade, moda, notícias, um mercado alargado e agências que colocavam as fotografias nas publicações e serviam de intermediárias entre os fotógrafos e o mercado. Uma delas era a Dephot, para a qual André trabalhou como assistente de fotografia e onde, em 1932, viu um primeiro trabalho publicado: ele fotografou para o Der Welt Spiegel a conferência mítica de Trotsky em Copenhagen, intitulada “O significado da Revolução Russa”.
Mas em 10 de maio de 1933, ocorreu em Berlim a Bücherverbrennung, queima de livros considerados “nocivos” ou “decadentes” pelo regime nazista. Outras queimas ocorreram nas semanas seguintes, em Berlim e outras cidades, sempre “com a presença de multidões, polícia, bombeiros e autoridades”.
Friedmann tem de voltar a fugir e junta-se à emigração política em Paris. O seu café era o Dôme. Aí encontrou o judeu polaco David Szymin, aliás Seymour, conhecido por Chim, um notável fotógrafo no início da carreira, a trabalhar para a revista comunista Regards. Chim apresentou-lhe um rapaz chamado Henry Cartier-Bresson e depois Pierre Grassman que viria a ser o dono do prestigiado laboratório de impressão fotográfica Picto. Mais tarde, em 1947, após o fim da Segunda Guerra Mundial, os três primeiros fundariam a agência Magnum.
Com Berlim tomada pelo nazismo, a capital do fotojornalismo tinha mudado para Paris. Mas havia uma multidão de jovens talentosos e com elevada formação, sem problemas de licença de residência, a falar bom francês e com máquinas Leica novas ou em segunda mão. André Friedmann era um rapaz sem diplomas, pobre e falando um francês terrível, desorganizado, sem noção de pontualidade e faltando frequentemente a compromissos. Quando fotografou Ruth Cerf num jardim perto de Montparnasse que talvez já não exista, aterrado pela Torre, André encontrou Gerda. Ainda não sabiam, mas estava a nascer uma coisa grande, maior do que eles, da sua vibrante e ameaçada juventude. Estava a nascer Robert Capa, um americano sem problemas económicos, bem conhecido nos Estado Unidos, recentemente desembarcado na Europa. Capa fotografava, Gerda, com o seu ar de boa onda e um francês sem sotaque, vendia as fotos nas Agências. André Friedmann desaparecera. Primeiro subsistiria nas rodas de amigos, depois na intimidade, a certa altura ele próprio começou a apresentar-se como Capa ou Bob. E no fim da Guerra Civil de Espanha, já ninguém sabia quem fora Friedmann. Gerda conservara o seu nome próprio e passara a ser Gerda Taro. Com Chim e Grassman, tinham arranjado um estúdio, num andar da rua Froidevaux. Vendiam fotos facilmente. O Verão de 1936 parecia correr bem. Até que veio aquele dia 17 de julho que iria mudar a vida de tantas pessoas e antecipar os horrores da Segunda Guerra Mundial. Um grupo de generais golpistas tinha iniciado um levantamento contra a República Espanhola e o seu governo legítimo. Os jovens exilados da Alemanha, dispersos em Paris, tinham a partir de agora um destino comum.
O primeiro trabalho comum foi Barcelona. A cidade resistira ao golpe, defendera a República e estabelecera-se um governo de coligação num ambiente de entusiasmo revolucionário. Desse governo participavam a CNT e o POUM, duas formações anarquistas antimilitaristas que rejeitavam a organização tradicional das forças militares e organizaram milícias (militia) com uma ligação horizontal e menos hierarquizada de responsabilidades. E o PSUC, um partido da Terceira Internacional. Na Barcelona desse ano, da qual os relatos de Orwell (Homenagem à Catalunha), Ilya Ehrenburg (Eve of War 1933-1941) e do esquecido Franz Borkenau (The Spanish Cockpit) são canónicos, Capa e Taro fotografaram juntos, muitas vezes ao mesmo tempo, os mesmos motivos. As fotografias foram publicadas em várias revistas embora creditadas todas a Capa, como o casal decidira previamente. Mas como Capa usava uma câmara Rolleyflex e Taro a Leica, com filmes de 35 mm, é fácil e fascinante, separar a autoria. Depois estiveram em Aragão, Madrid, Valencia. Em Valencia fotografaram a abertura do Congresso de Escritores e separaram-se, o que, como disse Capa, nunca deveria ter acontecido. Tendo ouvido rumores sobre a existência de uma ofensiva republicana em Brunete, perto de Madrid, Taro obteve transporte e dirigiu-se à frente. Fotografou febrilmente. Foi um empreendimento altamente arriscado e possivelmente imprudente. O general polaco Walter, que combatia ao lado dos republicanos, quando a viu, ordenou-lhe que abandonasse o local “pois o Inferno ia abrir-se ali”. Ela desobedeceu. As tropas de Franco foram apoiadas por Santiago, o santo padroeiro de Espanha (palavras de Franco) e pela Legião Condor, a aviação militar alemã que inaugurou os bombardeamentos sobre civis como estratégia militar. Em Brunete, a Legião Condor, que nessa altura fora remodelada e contava com aviões Henschel Hs 112 e 7000 operacionais, bombardeou em ondas sucessivas as posições republicanas, até as destruir. Gerda fotografou febrilmente, julgando-se indestrutível. Usava a câmara Leica que Capa lhe deixara em Valencia, e uma Eyemo que Richard de Rochemont, um realizador e produtor americano então a viver na Europa, emprestara a Capa. No final do dia pediu transporte a um jeep que se dirigia para a capital, onde contava revelar as fotos. Tinham-se calado as defesas republicanas e os aviões alemães, em voos baixos, metralhavam os alvos em fuga. O jeep, acossado, saiu da estrada para caminhos secundários. Um tanque de guerra republicano, descontrolado, esmagou a viatura. O que se passa a seguir é confuso e objeto de polémica. Transportada ao Hospital Inglês El Goloso, no Escorial, foi operada por um cirurgião estrangeiro voluntário e viria a morrer nessa madrugada, a 26 de Julho de 1936, com 26 anos. A enfermeira americana que assistiu às suas últimas horas disse que ela perguntava pelas câmaras. Estas nunca foram encontradas, nem as fotografias com que julgou ter capturado a batalha de Brunete.
É significativa a imagem de uma jovem mulher de 26 anos a disparar uma Leica contra os protótipos da Legião Condor que a máquina bélica nazi fabricava na preparação de uma Guerra Mundial, perante a impotência da opinião pública francesa, o Acordo defensivo entre a França e a Inglaterra que negou à República Espanhola qualquer apoio e meios de defesa e a mancha de ditaduras europeias que permitiu a Salazar declarar que o século XX será fascista.
Ela acreditava no poder da fotografia como documento. E no documento como denúncia. Ou simplesmente vivia o estrépito de uma batalha como o esplendor da sua vida. E a sua vida pertencia à imensa legião de talentos revelados nos anos terríveis entre as duas guerras mundiais, na fome e na privação, no exílio e na fuga, no desespero e na esperança. Gerda Taro, a inventora de Robert Capa, foi a primeira fotojornalista a morrer no campo de batalha.
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A Leica 1 [A] é considerada a primeira câmara fotográfica portátil. O design é de Oscar Barnack, um engenheiro da Optica Ernst Leitz, nascido em 1869.
Leitz era um reputado viajante e ambicionava construir um equipamento portátil que permitisse capturas sem necessidade de tripé e utilizasse rolos de 35 mm como os que se popularizavam nos filmes. Durante anos fabricaram protótipos que entregaram a reputados fotógrafos, para análise crítica e correção de erros.
Em 1925 apresentaram na Feira da Primavera de Leipzig o primeiro modelo. Foi um tremendo êxito. Modelo das câmaras dos 30 anos seguintes a Leica 1 [A] (Lei das primeiras três letras de Leitz e ca das primeiras letras de camera) democratizou a fotografia e permitiu, no que respeita aos jornalistas, maior proximidade e liberdade de ação.
A Leica de 35 mm foi o avanço tecnológico que permitiu o fotojornalismo.
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A nota biográfica de Gerda Taro foi baseada no livro da realizadora e escritora Jane Rogoyska. Gerda Taro, inventing Robert Capa, Jonathan Cape, London, 2013.
A biografia da autoria de Irma Schaber, 2009 e 2019, Edition Axel Menges, é igualmente muito bem documentada.
Ver igualmente Eyes of the World: Robert Capa, Gerda Taro, and the Invention of Modern Photojournalism, Marc Aronson e Marina Budhos, Martin’s Press, 2017.
E os Arquivos do ICP, International Center of Photography, em Nova Iorque.
