Cresceu a ver as safras acumularem-se nas eiras, onde subia as montanhas de sal, para depois escorregar, divertida, longe dos olhares do avô. Viria a ser ele o seu mestre quando Gilda decidiu trocar a arquitetura pelo labor nas salinas.
Hoje, além de trabalhar para o Núcleo Museológico do Sal, em Lavos, a marnoteira dedica-se ao ensino da música – completou o Conservatório de Música de Coimbra em Flauta Transversal. Mas nada supera o gosto de ser marnoteira e de preservar um património que lhe (nos) pertence.
Das duas centenas de marinhas que já moldaram a paisagem da Figueira da Foz, as que resistem hoje não são mais do que quatro dezenas, repartindo-se pelo braço sul do rio e pela Ilha da Morraceira. Naquele dia, quando o avô anunciou que iria passar as salinas aos filhos, Gilda soube que tinha uma missão: continuar a trazer o mar para terra. “Porque o nosso sal tem o mar lá dentro”.
Nasceu na Figueira da Foz?
Sim, há 41 anos, na Figueira da Foz.
Como foi o seu percurso até à arquitetura?
Tenho boas recordações da minha infância e lembro-me que quando era criança não sabia o que queria ser quando fosse adulta. Sei que gostava de dançar e adorava musicais, a música mexia comigo. Tentei várias vezes aprender um instrumento, mas foi só com os meus 14 anos, e por insistência de uma amiga que queria companhia, que fui aprender música para uma Filarmónica. Ela acabou por desistir e eu apaixonei-me pela arte dos sons e pela flauta transversal. Sempre fui boa aluna e quando cheguei ao fim do 9.ºano tive muitas dúvidas na área a seguir. Ponderei ir para um curso profissional de artes e ofícios, mas como não existia na Figueira da Foz segui a área das Artes. Entretanto também entrei para o Conservatório de Música.
Ao chegar ao 12º ano pensei seguir música, mas a vida dá muitas voltas. As dúvidas sempre permaneceram e as artes faziam parte de mim e eram uma outra paixão. Como dentro das artes também tinha imensas dúvidas entre pintura, escultura, design gráfico, fotografia, arquitetura… Optei por arquitetura e entrei em 1999 na ARCA, onde os dois primeiros anos de arquitetura eram comuns aos outros cursos artísticos. Foi um caminho interessante e muito enriquecedor. A arquitetura deu-me ferramentas para transformar o espaço, compreender e resolver problemas, refletir, planear, respeitar o espaço, o ambiente e as pessoas.
Entretanto começou a dedicar-se a uma profissão que é socialmente pouco reconhecida, mal remunerada e que está quase em vias de extinção? Porque o fez?
Ainda estava a acabar o meu curso quando os meus avós decidiram que estavam cansados e iam entregar as salinas aos filhos. Naquele momento, o que até ali não fazia parte da minha vida, começou a ganhar um interesse inexplicável. O meu olhar para o território falou mais alto e naquele momento só pensava que as marinhas dos meus avós seriam mais umas que acabariam abandonadas. Foi nessa altura que, juntamente com a minha mãe, decidimos que teríamos que aprender a fazer sal. O meu avô foi o nosso mestre durante dois anos e assim tornei-me marnoteira. Apaixonei-me por esta atividade que passou a ser um modo de estar na vida.
Esta profissão é socialmente pouco reconhecida, mas acredito que seja por falta de conhecimento. É importante formar as pessoas e mostrar que esta atividade é muito mais que fazer sal. É manter uma identidade, um património cultural, imaterial e ambiental. Acredito que cada um tem o seu papel e o meu será transmitir esta arte de saber fazer sal e, talvez mudar a maneira de pensar de alguns em relação a esta profissão. O marnoto desempenha uma atividade que tem um impacto zero no meio ambiente, para fazer sal só precisa de respeitar a natureza e aproveitar o sol, o mar, o vento e a argila. Ao manter as salinas tradicionais ativas, o marnoto está a contribuir para a manutenção de um ecossistema único, que é de todos nós. E em jeito de brincadeira costumo dizer que deveríamos ser reconhecidos como “guardiões da natureza”.
Já disse que salinas são tradição da família. Do que se recorda dessa tradição que a fez regressar?
Recordo que os meus avós trabalhavam nas salinas. Parecia um trabalho duro, mas para mim significava férias e, enquanto criança, as salinas eram um local fantástico para brincar: água quentinha, montanhas de sal… Lembro-me de brincar dentro do armazém de sal, onde havia um baloiço e sal até ao teto, de subir a montanha de sal e escorregar por ela abaixo sem ninguém ver. Recordo-me de o meu avô pedir para eu e os meus primos irmos apanhar cachelros (salicórnia), que naquela altura era considerada uma erva daninha e hoje é uma planta gourmet. Muitas vezes ia para as salinas num pequeno barco de madeira a remos e à vara. Era uma aventura.
Considera-se uma marnoteira e uma salineira? O que diferencia as duas?
Considero-me uma marnoteira, pois tenho o conhecimento da arte de fazer o sal, que tem sido transmitida de geração em geração e chegou aos nossos dias. Noutros tempos esta atividade era exclusiva dos homens. As mulheres desempenhavam outro papel, transportar o “torrão” (as terras das limpezas) e o sal à cabeça — eram conhecidas por salineiras.
Assumiu a gestão da produção da salina onde está o núcleo museológico do sal. Como tem sido esse trabalho na recuperação das vivências do labor nas salinas da Figueira da Foz?
Assumi a gestão da produção da salina onde está o núcleo museológico do sal e tem sido um desafio, pois esta salina tem que ser trabalhada e compreendida de uma outra forma. Aqui não podemos contar só com os trabalhos inerentes à salina, pois ela é “um museu vivo” e é visitada por muitas pessoas que pretendem conhecer esta atividade ancestral. Este é o local ideal para sensibilizar os visitantes para a importância desta atividade no território. Aqui dinamizo muitas das atividades de serviço educativo como “Marnoto por um dia”, “O que escondem as salinas”, valorizando assim as nossas raízes.
Chegaram a contar-se cerca de 200 salinas na Figueira. Quantas existem hoje?
As salinas da Figueira da Foz situam-se no estuário do rio Mondego, atualmente existem perto de quatro dezenas de salinas ativas repartindo-se pelo braço sul do rio e pela Ilha da Morraceira.
Deixou a arquitetura?
Não exerço. Mas a arquitetura está sempre presente no meu dia-a-dia e na forma de olhar para as salinas e o território que as envolve.
É ainda professora de expressão musical e instrumento, membro da Sociedade Filarmónica Figueirense. A música é outro tempero importante na sua vida?
Sim a música é um outro tempero muito importante na minha vida, sempre acompanhou todo o meu percurso até aqui. Completei o Conservatório de Música de Coimbra em Flauta Transversal e sempre participei em vários grupos musicais. Comecei a dar aulas de expressão musical em 2009 e até hoje adoro ensinar. O associativismo acompanhou sempre o meu caminho. O acreditar em causas e trabalhar para o conjunto. Todos juntos somos mais fortes. Isso acontece no sal e na música.
Participou na peça do Teatro do Vestido, em “Mãos Gretadas (ainda às voltas com o sal)”, onde se cruzavam as histórias de vida das pessoas que trabalham nas salinas. Como foi essa experiência?
A minha participação foi no apoio aos artistas, contribuindo com histórias e práticas muito próprias desta comunidade. Adorei a homenagem que fizeram aos homens e mulheres do salgado da Figueira da Foz, através da sua arte. Foi um espetáculo em que fiquei emocionada, pois foi transmitida ao público a importância de manter esta atividade viva e ativa.