Foi ao ouvir os grilos na praça da Galiza que me lembrei dos grilos da minha infância. Não se espera que existam na cidade esses insectos pois um grilo cantante é quase epítome da vida no campo, mas a verdade é que não cresci propriamente no campo. E uma ressalva antes que seja tarde e o texto desgovernado adquira acidentalmente tons de nostalgia: isto não são memórias de uma infância feliz – ou, menos ainda, infeliz. A rua onde morava, numa freguesia de Gaia ainda com apontamentos de ruralidade mas em transição acelerada para subúrbio, era uma fiada de pequenos prédios de dois ou três pisos, todos construídos na década de 1960. Cada andar tinha escadas de acesso exteriores e era residência de uma única família, sendo o quadrado ajardinado à frente de cada prédio reservado aos moradores do rés-do-chão. Havia pátios cimentados dividindo os prédios, dando acesso a garagens (uma por andar) onde se guardavam o VW carocha, o Fiat 127, as bicicletas da criançada e armários com ferramentas diversas se o pai fosse dado à bricolage (o meu não era). Nas traseiras do nosso prédio, o senhorio, morador do andar abaixo do nosso, tinha convertido em pomar uma parcela rectangular de terreno cercada por muros altos. Da nossa varanda podíamos ver alinhadas as vinte ou trinta pequenas árvores, mas o portão do pomar estava sempre fechado e nunca provámos fruta ali produzida. Uns anos mais tarde, o senhorio e a mulher construíram, sobre as garagens, um pequeno aviário que fez do pátio um túnel cavernoso e impregnou o prédio com um odor tipicamente aldeão. A criação de galinhas podia ser vista como atavismo ou gesto de resistência tardio e incoerente. Afinal aquela rua, que eles tinham ajudado a tomar forma, era um posto avançado do “progresso” que, em duas ou três décadas, haveria de engolir os campos de cultivo que, nessa época, ainda se estendiam largamente por detrás da cortina de prédios.
Sim, havia campo, lavoura e lavradores no lugar onde cresci, mas a minha família, tal como as demais famílias do bairro, não era do campo nem se dava com esses camponeses em vias de extinção. Nós éramos o futuro, eles o passado. Contudo, as crianças eram deixadas à solta; e, embora as que moravam nos prédios e tinham pais que trabalhavam na cidade se soubessem diferentes das que viviam, rodeadas de animais e utensílios de lavoura, na decrépita casa da quinta, os contactos e contaminações mútuas aconteceram com naturalidade. Na ida para a escola usávamos atalhos que cortavam pelos campos, às vezes pisando cultivos e provocando iras e ameaças. Éramos crianças suburbanas com alguns (e pouco edificantes) hábitos campestres – hábitos que largaríamos, à medida que crescêssemos, como roupa que deixasse de nos servir. Tínhamos fisgas para atirar aos pássaros, as melhores eram de madeira envernizada e feitas por um habilidoso da vizinhança, mas não me recordo de alguma vez termos acertado num pardal que fosse. Não apenas por ser fraca a pontaria: pássaros não haveria muitos, pois nem na nossa rua nem na quinta se viam árvores com porte capaz de lhes dar abrigo. Sem ninhos para pilhar, a nossa crueldade infantil virou-se para os grilos. Havia toda uma ciência de caçar grilos: enfiávamos uma palha no buraco, rodando-a vagarosamente, e esperávamos que as cócegas ou o susto fizessem o bicho sair. O seu destino, quando o apanhávamos, era ficar prisioneiro numa caixa com duas ou três aberturas para respirar, ciosamente guardada debaixo da cama. Em troca de generosa ração de alface, esperávamos do grilo que cantasse na sua lôbrega prisão com o mesmo entusiasmo com que cantava em liberdade. Inexplicavelmente, ele cantava pouco ou nada e morria duas ou três semanas depois.
E foi o cantar dos grilos que me trouxe estas reminiscências, enquanto, sem esperar pelo verde para peões, atravesso a correr o cruzamento. Grilos na cidade? É estranho, mesmo numa rua dita do Campo Alegre. Prestando mais atenção, o canto destes supostos grilos é brusco e irregular, parecendo o número de insectos canoros oscilar entre um e três. E, vendo bem, não são grilos nem outros insectos que produzem os bucólicos sons: são polícias equipados com apitos que estridulam e gesticulam para ordenar o trânsito. As obras do metro cortaram faixas de rodagem e os engarrafamentos neste local são permanentes. Mesmo ao lado, as escavações para a nova estação destruíram um jardim inteiro, sacrificando uma alameda de quinze freixos adultos. Enquanto havia jardim nunca aqui se ouviam cantar grilos. Agora que o frio outonal se instalou, também os falsos grilos deixaram de cantar: primeiro perderam os apitos, agora já nem aparecem. Haverá lição útil a extrair de tudo isto?