Número 34

28 de Outubro de 2023

EXCURSÕES

Histórias do verde pinho

PAULO VENTURA ARAÚJO

Aprendi na escola, como todos os portugueses acima de certa idade, que D. Dinis, além de compor versos e de ter sido casado com uma rainha milagreira, deu ordens para plantar o pinhal de Leiria. Ficou-me a ideia, que nada na minha infância suburbana pôde desmentir, de que árvores e bosques só existiriam se alguém os plantasse. Acontecia apenas que a história não guardava o nome dos plantadores que eram menos do que reis ou tinham actuado a uma escala modesta. Depois fui entendendo que, até em Portugal, a uma distância inconcebível da floresta amazónica, há árvores que nascem e crescem sem ajuda humana, e que uma floresta natural não respeita qualquer padrão geométrico: os caminhos que a cruzam, se os houver, são tortuosos, desvelando a cada passo novas combinações de formas, cores e sons. As florestas ou bosques de génese humana nunca proporcionam experiências sensoriais equiparáveis a essa. E o pinhal de Leiria (ou pinhal d’El-Rei), tal como a contígua mata do Urso e outras matas do litoral centro, dividida como estava por uma perfeita rede de aceiros e arrifes e com os pinheiros militarmente alinhados, parecia a completa negação da espontaneidade que prezamos na natureza.

Só que, tirando partido das condições criadas pelas plantações (maior ensombramento e humidade, modificação da estrutura do solo), a natureza soube intrometer-se e contaminar a obra humana. Os pinhais do litoral ocuparam extensas dunas que, a não ter havido essa arborização, acolheriam apenas a vegetação herbácea habitual das areias de beira-mar, à mistura com certos arbustos (como a madorneira ou a camarinha) adaptados a esse habitat agreste. Sem que a vegetação tipicamente dunar fosse obliterada, a protecção oferecida pelos pinheiros permitiu a instalação de samoucos, medronheiros e folhados, de urzes e tojos diversos, de sargaças e sargacinhas, por vezes até de carvalhos. No Outuno, era habitual ver famílias inteiras nos pinhais à cata de cogumelos, e os aficionados das orquídeas silvestres conheciam bem, na imensidão destas matas só na aparência homogéneas, os lugares recatados  onde se encontravam essas fotogénicas beldades.

Encantei-me com estes pinhais – e, porque sem pinheiros não há pinhais e o mérito deve ser reconhecido, aprendi a gostar de uma árvore tão banal como o pinheiro-bravo, a ponto de me condoer quando o via sangrado quase até à morte para extracção da resina. Mas os pinheiros sem mais não fazem um bosque: no interior do país, os pinhais plantados pelo Estado Novo são, ainda hoje, pobres em diversidade vegetal e monótonos para a vista. Nunca consegui gostar deles, e não os reputo de muito melhores do que os eucaliptais que lhes têm tomado o lugar. São, uns e outros, imensos paióis à espera de uma tragédia recorrente. A pior de todas as tragédias, contudo, não poupou o litoral, com o pinhal d’El-Rei e a mata do Urso a arderem quase na totalidade em Outubro de 2017. Mesmo que mais a norte, por exemplo em Ovar, Esposende e Caminha, subsistam pinhais interessantes, nenhum é equiparável ao que se perdeu e levará longas décadas a ser recuperado.

Talvez já não haja, de norte a sul de Portugal, lugar algum onde a companhia do pinheiro-bravo me faça feliz. Será que afinal não gosto dessa árvore? É uma dúvida inquietante para um amador de botânica. Posso considerar indesejável a presença de certas árvores ou plantas em determinados locais, mas cada planta em si é digna de admiração, e é inapropriado sujeitá-la a critérios estéticos ou a julgamentos morais.  Toda a planta no seu habitat merece o mais escrupuloso respeito. E esse é o problema dos pinheiros em Portugal: mesmo que o pinheiro-bravo (Pinus pinaster) e o pinheiro-manso (Pinus pinea)  sejam tidos como autóctones no nosso país, as áreas onde seriam espontâneos representam uma fracção ínfima da sua distribuição actual. No Algarve, talvez alguns dos povoamentos de pinheiro-manso que sobram entre as urbanizações turísticas do litoral sejam espontâneos; quanto ao pinheiro-bravo (que, originalmente, é mesmo uma árvore de areias litorais), o mais provável – dada a escala a que, também na faixa costeira, ele foi plantado – é que já não existam povoamentos espontâneos. Assim, é raro podermos encontrar em Portugal um pinheiro que esteja genuinamente no seu habitat.

Por isso os pinheiros-silvestres do Gerês ganharam ressonância mítica. O Pinus sylvestris é um pinheiro de tronco avermelhado, com agulhas curtas e pinhas pequenas, nativo da Europa (incluindo Península Ibérica) e cultivado desde o século XIX em povoamentos florestais nas montanhas do norte e centro de Portugal. Foi também no final desse século que se deu a descoberta de uma população espontânea de pinheiro-silvestre no Gerês, em vales de ribeiras torrenciais nas zonas mais remotas da serra. É essa, até hoje, a única população autóctone da espécie conhecida em território português. Os pinheiros-silvestres do Gerês, de troncos curtos e retorcidos e de copas aplanadas, castigados pelo caudal furioso da ribeira (chovera copiosamente dias antes de eu e a Maria os visitarmos), pareciam-se pouco com os exemplares altos e aprumados que conhecíamos dos povoamentos florestais do Marão. Para chegarmos até eles, rompemos entre urzes e giestas por trilhos que mal se adivinhavam, e experimentámos sensações de isolamento e de distância como, em Portugal, só no Gerês são possíveis. Tudo para voltar a gostar de pinheiros.


Pinus sylvestris, Serra do Gerês