Número 19

5 de Fevereiro de 2022

O ESTRANGEIRO NO LUGAR DO OUTRO

I. A Medeia, de Christa Wolf

ABÍLIO HERNANDEZ

Não existem só as pedras, as plantas, os animais, os

humanos e os anjos.

Há também relações, tensão e sentido, que é onde

esse meu tu existe. É disso que o mundo é feito,

feito de vários mundos e de encontros de figuras.

Maria Gabriela Llansol,

O Ensaio de Música

Um texto só tem vida quando em diálogo com outro texto, escreveu Baktine.[i] Não existe, portanto, um texto primeiro, original, tal como não existe um texto puro, imaculado. O que há, acrescento eu, são constantes e sempre diferentes camadas de escrita, num processo em que toda a escrita é, inevitavelmente, uma reescrita, ou seja, uma escrita sobre outra escrita, anterior ou futura, e sobre si mesma. Do mesmo modo, toda a leitura se processa como releitura, quer dizer, uma memória de outras leituras anteriores, mas também uma memória das que ainda hão de vir. Escrita e leitura abrem-se assim num mesmo processo em permanente e interminável construção.

Nenhum dos textos que escolhi sob o título geral de O Estrangeiro no lugar do outro é tratado como “adaptação” de um texto anterior. A Medeia, de Christa Wolf, não é uma “adaptação” da tragédia de Eurípides; em “Le cygne”, de Baudelaire, não procuro uma “adaptação” de Prudhomme ou de Mallarmé; e Nosferatu, de Murnau, não é, seguramente, uma “adaptação” do romance epistolar de Bram Stoker.

Não há, pois, nesta minha escrita, qualquer ideia de uma hierarquia que pressuponha um modelo e as suas representações, um texto original e as suas adaptações. Em vez disso, existe a convicção de que a narrativa, a poesia e o cinema partilham um desígnio comum, que tem a sua manifestação concreta na escrita que as respetivas linguagens tornam possível.

O cinema constrói a sua escrita fora do campo da literatura e ao fazê-lo dá a ver o modo como partilha o território heterogéneo da arte: ou seja, um modo singular e interrogativo, quer dizer, em forma de questionamento, porque o que sempre se põe em causa em qualquer prática artística é a propriedade da própria linguagem.

Blanchot define assim a reescrita enquanto princípio textual:

Écrire, c’est peut-être non-écrire en récrivant – effacer (en écrivant par-dessus) ce qui n’est pas encore écrit et que la réécriture non seulement recouvre, mais restaure obliquement en la recouvrant, en obligeant à penser qu’il y avait quelque chose d’antérieur, une première version (détour) ou, pis, un texte d’origine et par là nous engageant dans le processus de l’illusion du déchiffrement infini.[ii]

A Medeia de Christa Wolf, o cisne de Charles Baudelaire e o Nosferatu de F.W. Murnau são os textos que escolhi – um romance, um poema e um filme – para falar da prática da escrita em três linguagens diferentes e em torno de um tema comum: o estrangeiro.

O que é um estrangeiro ou uma estrangeira?

Um nome. Quase sempre um nome, apenas. Não um homem ou uma mulher, mas um nome, um rótulo. Aquele a quem se exige que permaneça para lá da fronteira que separa o dentro do fora, naquele não-lugar bárbaro, pré-cultural e pré-jurídico, além e aquém da cidade, da nação ou do Estado. Pode ser o lado de fora ficcional da Corinto de Wolf, do Paris de Baudelaire, ou da Wisborg de Murnau. Mas também pode ser o lado de fora, real, de Calais, de Lesbos, ou de Nea Kavala. Será sempre o não-lugar do estrangeiro, do exilado, do migrante, do intruso, do outro.

Referindo-se a uma transplantação de coração que sofrera uma década antes, Jean-Luc Nancy escreveu um texto sobre a identidade e o estrangeiro, o mesmo e o diferente, o dentro e o fora. O texto chama-se L’Intrus e começa assim:

Il faut qu’il y ait de l’intrus dans l’étranger, sans quoi il perd son étrangeté. S’il a déjà droit d’entrée et de séjour, s’il est attendu et reçu sans que rien de lui reste hors d’attente ni hors d’accueil, il n’est plus l’intrus, mais il n’est plus, non plus, l’étranger. Aussi n’est-il ni logiquement recevable, ni éthiquement admissible, d’exclure toute intrusion dans la venue de l’étranger. Une fois qu’il est là, s’il reste étranger, aussi longtemps qu’il le reste (…), sa venue ne cesse pas : il continue à venir, et elle ne cesse pas d’être à quelque égard une intrusion (…), un dérangement, un trouble dans l’intimité. (…) accueillir l’étranger, il faut bien que ce soit aussi éprouver son intrusion. Le plus souvent, on ne veut pas l’admettre. (…) Cette correction morale suppose qu’on reçoit l’étranger en effaçant sur le seuil son étrangeté : elle veut donc qu’on ne l’ait point reçu. Mais l’étranger insiste, et fait intrusion. C’est cela qui n’est pas facile à recevoir, ni peut-être à concevoir.[iii]

É esta ideia da relação com o estrangeiro, com aquele ou aquela que os do lado de dentro concebem como intruso, esquecendo o dom da hospitalidade, que desejo colocar como referência para a leitura dos textos que escolhi.
 

De todas as personagens do teatro grego, Medeia é a que representa, sob a sua forma mais trágica, a figura da estrangeira.

Quem é Medeia?

Feiticeira, detentora de um poderoso saber antigo e intimidatório? Traidora da família inicial, assassina do irmão durante a fuga da Cólquida natal? Bárbara e estrangeira, que por amor a Jasão se exila em Corinto? Esposa possuída pela fúria da traição de um homem sedento de poder? Mãe, absurdamente perdida de paixão, que comete o mais terrível e inaceitável dos crimes, assassinando os próprios filhos? Sim, Medeia é tudo isto, a Medeia que Eurípides nos legou e que Apolónio de Rodes, Séneca e outros grandes autores ajudaram a difundir em diferentes linguagens e diversas formas de reescrita ao longo dos séculos.[iv]

Mais próximos de nós, Anouilh, no teatro (1942); Pasolini, no cinema (1969); Theodorakis, na música (1991) e Christa Wolf, no romance (1996), reescreveram-na com olhares diferentes e inovadores. Na literatura de língua alemã, o austríaco Franz Grillparzer foi o primeiro, na trilogia sobre o mito dos argonautas (Das goldene Vlis, 1819), a estabelecer uma ligação entre um olhar antigo e consensualmente aceito e um olhar moderno e inovador. No terceiro drama da trilogia, Medeia, exilada em Corinto, ainda é, como em Eurípides e em Séneca, culpada das mortes de Creonte, de Creúsa e dos filhos. E, no entanto, a personagem é já outra, diferente, que a si mesma se define como uma mulher frágil, que abdica do seu poder de feiticeira e se confessa indefesa perante o homem que a trai e a sociedade que a subalterniza enquanto estrangeira e enquanto mulher:

A ciência dos poderes misteriosos,

à noite que a deu à luz

eu devolvi-a.

E fraca, mulher indefesa e necessitada de ajuda

lanço-me nos braços abertos do meu marido.[v]

Registo, para a nossa memória cinéfila, o eco que, quase século e meio depois, estas palavras encontram em Rashomon, de Akira Kurosawa, na fala de Masako, a mulher do samurai, quando, após ter sido violada por Tajomaru, diante do marido amarrado pelo violador, diz Que podia fazer uma mulher frágil e indefesa como eu? ilustrando assim a situação da mulher na sociedade masculina, guerreira e violenta do Japão (do Japão medieval em que a história filmada ocorre, mas também do Japão do pós-Segunda Guerra Mundial do século XX, em que Kurosawa a filma).

No drama de Grillparzer, Medeia é a estrangeira exilada numa cidade encerrada sobre si mesma, que por razões de Estado a condena a novo exílio. Sem escolha, Medeia sujeita-se à punição.

Pertencerá, porém, a uma mulher a reescrita mais transgressora do mito: Christa Wolf. Após a queda do muro de Berlim e da reunificação das duas Alemanhas – que ela, habitante da RDA, apoiante e depois opositora do regime, sempre contestou – Wolf publica, em 1996, Medea. Stimmen (Medeia. Vozes), um romance igualmente transgressor pela estrutura polifónica da sua escrita: as Stimmen do título são as vozes das personagens responsáveis pela narração, cada uma delas detentora de discurso próprio, autónomo, através do qual se manifestam as diferentes visões pessoais dos acontecimentos que envolvem a estrangeira. Medeia, a estrangeira, é uma dessas vozes.

A reversão da imagem de Medeia e de toda a tradição que tem origem em Eurípides é absoluta. O romance é uma reescrita contra o mito, contra Eurípides, contra a tradição. É o refazer de toda uma história literária a partir da fala e da escrita de uma mulher, é o enterro definitivo do arquétipo da mulher vingativa que mata por razões passionais. É a reconfiguração de Medeia como um problema coletivo, político, social e cultural, que, à semelhança de outras figuras da mitologia clássica, como Cassandra, Andrómaca, Creúsa e outras, revela o que é ser mulher numa cultura patriarcal, violenta e xenófoba. No caso da Medeia de Wolf, porém, e ao contrário da visão que dessas mulheres foi  imposta pelo mito e pela tradição literária, não é de submissão que se trata, mas de revolta e confronto, que ela assume na condição de exilada que se recusa a prescindir da sua estraneidade no país que a acolhera; enquanto ser político que denuncia um poder iníquo e sustentado na mentira; e, por fim, na condição de mulher discriminada e perseguida pela hegemonia patriarcal.

Essa hegemonia é personificada por Eete, rei da Cólquida e pai de Medeia, por Creonte, rei de Corinto, e por Jasão, a quem o poder está prometido pelo próprio Creonte. É nela, na figura masculina, que reside a sede e a sêde de um poder legitimado pela lógica de uma razão que não é mais do que a razão da força. À outra figura, a da mulher, continua reservado o lugar subalterno ou, quando muito, um poder meramente simbólico. Medeia, filha de Eete e neta do Sol, é a exilada cuja força já só reside na memória de um poder longínquo no tempo e distante no espaço, quando era sacerdotisa e maga, na sua Cólquida.

Ao contrário do que sucede em todas as reescritas do mito, incluindo em Pasolini, é Eete e não Medeia quem, no romance de Wolf, assassina Apsirto, seu filho e irmão de Medeia. O rei mata o primogénito para que este não lhe usurpe o poder que não quer perder. Trata-se, pois, de um assassínio político. Do mesmo modo, em Corinto, Creonte teme que Ifínoe, sua filha primogénita, deseje o lugar que ele ocupa e que, pelas leis da cidade, ela teria o direito de ocupar após catorze anos de reinado do pai. Para o rei, este é um direito inaceitável e tanto mais inaceitável quanto o desejo de usufruir desse direito procede não de um homem, mas de uma mulher. Para que Ifínoe não lhe roube o trono e não viole a hegemonia masculina, Creonte mata a filha. Trata-se, de novo, de um assassínio político. Ao reverter a autoria da morte de Apsirto e ao denunciar a natureza política dos crimes de Eete e de Creonte, Medeia. Vozes abre-se enquanto gesto absolutamente inédito em toda a história das sucessivas reescritas do mito.

Os caminhos que suportam o poder assente numa culpa hereditária são tortuosos. Com a cumplicidade de Mérope, mãe de Ifínoe e mulher de Creonte, cativa e submissa na sua própria sujeição, Medeia é falsamente acusada do assassínio de Ifínoe. A hospitalidade que lhe havia sido concebida transforma-se em violenta hostilidade.

A razão para tal não é passional, é, uma vez mais, política, pois Medeia descobrira o corpo da jovem nos subterrâneos do palácio real, pondo assim em causa o pacto fundador da cidade e colocando os coríntios perante a verdade reprimida, ou seja, perante tudo quanto não se quer reconhecer racionalmente, porque é incompatível com a consciência moral hegemónica e, por isso, inaceitável pela memória coletiva.

Já sem o saber antigo e mágico, mas detentora de um segredo de Estado, a estrangeira representa um perigo político para a sobrevivência de uma sociedade baseada num pacto de denegação, cujo fantasma se liberta do corpo escondido de Ifínoe. Medeia, a bárbara, a estrangeira vinda de Colcos, expõe à luz do sol o que jazia sepultado no inconsciente coletivo da cidade, e é por isso que ela tem de ser condenada ao exílio.

Para obter esse objetivo, o poder de Corinto encontra uma forma de rasurar o ato de que ele e só ele é responsável: fabricar a imagem de uma Medeia assassina e filicida. A exilada que ousa desafiar o poder da cidade, que enquanto estrangeira está excluída do direito à cidadania, só tem direito a existir no lugar do outro, o lugar da proscrita, da migrante devolvida ao não-mundo do lado de lá da fronteira, do lado de fora da cidade.

É assim em qualquer cidade.  E em qualquer tempo.

Banida, sem possibilidade de regresso ao seu país, Medeia junta-se a uma comunidade de mulheres de Colcos, que vivem nas montanhas, como selvagens, mas livres, enquanto em Corinto, tudo se desmorona. Creúsa, a filha de Creonte prometida a Jasão, suicida-se e este morre sob o casco do seu navio. Nas montanhas, naquilo que é, no romance, a mais radical reversão do mito, Medeia toma conhecimento que os filhos haviam sido perseguidos e mutilados nas ruas por um grupo de coríntios.

Os corpos mutilados das crianças trazem à memória do leitor – este leitor – e porque a História assim me convoca, um outro corpo, o corpo de um exilado na sua própria terra, o corpo de um poeta, cineasta, intelectual e herético que, tal como Christa Wolf, reescrevera o mito de Medeia e que foi brutalmente mutilado numa rua de Ostia, junto à praia, numa zona de prostituição legitimada por uma sociedade prostituída.

Em Pasolini, pois é dele que falo, Medeia é ainda culpada dos crimes que Eurípides lhe atribui – a morte do irmão, de Creonte, de Creúsa e dos filhos. Mas o filme de Pasolini transfigura a tragédia de Eurípides, indo para além do motivo passional, que não abandona, mas revisitando o conflito entre Medeia e Jasão como um confronto entre duas culturas: de um lado, o mundo arcaico, sagrado e agrário da Cólquida de Medeia; do outro, o mundo novo, burguês, racional, pragmático e mercantilista, expressão do poder do logos e da ordem, que Jasão representa.

Em Pasolini, a união indestrutível de Medeia com a terra e o sagrado vence a lógica manipuladora de Jasão, e a eliminação brutal de toda a sua descendência representa a morte em vida do homem manipulador e sedento de poder; mas, sobretudo, significa a destruição simbólica de uma ordem patriarcal e o corte sem retorno de todos os elos com a História. Entre o mundo agrário que esta tornou obsoleto e a moderna sociedade urbana e mercantilista, nenhum compromisso histórico é possível no filme de Pasolini. Nada expressa melhor esta impossibilidade do que o extraordinário plano final do filme, em que o rosto belo e em fúria de Medeia, envolta em chamas, grita, para o mundo, para a História, para nós, Niente è più possibile ormai.[vi]

Sob o gesto blasfemo da estrangeira pasoliniana está latente o subtexto da radicalidade blasfematória com que o próprio Pasolini enfrentou uma sociedade mercantilista, homofóbica e xenófoba, onde ele próprio sempre se sentiu estrangeiro. Como a Medeia na Corinto de Christa Wolf. Ambos, poeta e personagem, se tornaram corpos estranhos, inaceitáveis, no pensamento das respetivas sociedades: a real, de Pasolini, a imaginária, de Medea.Stimmen

Une fois qu’il est là, s’il reste étranger, aussi longtemps qu’il le reste…, sa venue ne cesse pas : il continue à venir, et elle ne cesse pas d’être à quelque égard une intrusion…, un dérangement, un trouble dans l’intimité…


[i] Mikhail Bakhtine, Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard, 1978, p. 381.

[ii] Maurice Blanchot, Le pas au-delà. Paris : Gallimard, 1973, p. 67: “Escrever é talvez não-escrever escrevendo – apagar (escrevendo por cima) o que não está ainda escrito e que a reescrita não somente cobre, mas restaura obliquamente ao recobri-la, obrigando a pensar que havia qualquer coisa anterior, uma primeira versão (desvio) ou, pior, um texto de origem, comprometendo-nos assim num processo da ilusão da decifração infinita.” (Tradução minha).

[iii] Jean-Luc Nancy, L’Intrus. Paris: Galilée, 2000, pp. 11-12. “É preciso que no estrangeiro exista o intruso, sem o que aquele perde a sua estraneidade. Se ele tem já direito de entrada e de permanência, se ele é esperado e recebido sem que nada dele fique excluído desse recebimento e desse acolhimento, então ele já não é o intruso, mas também não é mais o estrangeiro. Por conseguinte, não é logicamente admissível nem eticamente aceitável excluir qualquer intrusão na chegada do estrangeiro.

Uma vez lá, se é estrangeiro, durante todo o tempo em que o for (…), a sua vinda nunca cessa: ele continua a vir, e a intrusão não cessa de ser de algum modo uma intrusão (…), uma perturbação, um problema na intimidade. (…) acolher o estrangeiro deve também significar experimentar a sua intrusão. Na maioria das vezes, não queremos admiti-lo. (…) Esta correção moral supõe que se acolha o estrangeiro apagando a sua estranheza na soleira da porta: como se nunca o tivéssemos acolhido. Mas o estranho insiste e intromete-se. É isso que não é fácil acolher, nem talvez conceber.” (Trad. minha).

[iv] Abílio Hernandez Cardoso, Dar a ver o que nos cega: escritos sobre cinema. Lisboa: Edições 70, 2019, pp. 149 ss.

[v] “Die Wissenschaft geheimnisvoller Kräfte / der Nacht, die sie gebar / gab ich sie wieder/ und schwach, ein schutzlos, hilfbedürftig Weib / Werf ich mich in des Gatten offne Arme”. (Franz GRILLPARZER, Medea. Reklam 1994 [1819], pg 36). Tradução minha.

[vi] Abílio Hernandez Cardoso, op. cit, pp. 161-162.