(Tela preta.) Olá, boa tarde. Está um lindo dia de sol, muito calor. No entanto, estou num cubículo escuro, num estúdio de gravação, a falar para o microfone, e aqui está frio. Começa assim, a trama de uma incursão pelo alvoroço da memória, como antecâmara da acção, que seguirá um trajecto não-linear, violento e desmedido, a partir desses primeiros segundos, às escuras, assumindo que a luz lá fora é tão somente o garante de que estaremos, desde já, a fantasiar.
A partir daqui, como a voz que narra e que nos entra pelos ouvidos ― pelos dois lados da cabeça ― seremos o sujeito que sairá, devagar, de uma breve suspensão do mundo, de olhos vendados à espera da criação, do primeiro raio de luz, uma espécie de impulso de maternidade, de onde sairemos herdeiros de um passado difuso mas em aberto, íntimo mas apreensível, que se adivinha mas que não nos pertence. Depois, surge o retrato de uma mulher, presa no momento do disparo, num final de tarde anunciado pelo contraste das sombras na parede branca. Se o cabelo da mulher e o corte do vestido a atiram para um tempo que já não é o nosso, a luz que denuncia um sol forte faz-nos recuar uns segundos, quando, perante o negro, alguém nos falava da beleza do dia. Estamos já enredados numa teia que não nos permitirá prosseguir sem arrastar tudo aquilo que trazemos connosco: a indumentária, a identificação, o medo e as recordações. E sabendo da armadilha que é esta primeira fotografia (que é toda a Fotografia), reconhecemos as sombras do que parecem ser os braços de uma videira a cobrirem o corpo desta mulher, na parede que lhe serve de fundo, a fundir ambos os corpos na mesma mancha escura.
Se há instantes imaginámos o dia de sol, agora percebemos que a luz vem do álbum de família, de um pretérito ao qual nos deram acesso limitado, dotados apenas da nossa capacidade de ver no escuro. E tudo prossegue na sala fria da narração, qual régie assente nas profundezas da cidade que se vai apresentando como um conjunto de fragmentos históricos e anti-históricos, mas sempre à superfície, sempre atenta às dissonâncias que se fixam à vista de todos, incluindo nós próprios, armadilhados, com a chave da solução de um problema resolvido logo à partida: Quantas mãos construíram isto? (Aponta para a cidade, para a memória, para Ela.) As pessoas do passado. Sem nome. Biliões. Uma massa branca de esquecimento.
Pois se começámos na câmara escura, com a ausência de luz, estamos agora perante a acumulação, o excesso, a branquitude. E porque a Fotografia tem quase duzentos anos, existe uma humanidade que já foi feita de carne e que agora é feita de toda a luz que chega aos nossos olhos. Dos operários da fábrica, anónimos filmados pelos irmãos Lumière, a Marilyn ― que foi perdendo o sobrenome conforme foi perdendo o seu mistério ―, todos os corpos estão sujeitos a um esvaziamento letal. Por isso não entro no meu filme, diz a narradora. Fico no exterior.
(Tela preta.) A câmara de filmar percorre a cidade sozinha: vai passear o filme. A narradora fica em casa e implora-lhe: Vai onde Ele costuma estar. Ela encontra este. Aquele. Mostra-me. A Ele não o encontra. Não sabemos quem Ele é, mas sabemos, porque nos é narrado, que Ele lhe falava de arquitectura, enquanto nós vemos imagens de rostos, de gárgulas, de ruínas. Ela aponta para onde está, para onde pode. Descobre os caminhos entre os ramos da camélias que desembocam em túneis e pontes. Ensina a câmara a filmar. A ver a cidade para além dela. A perceber que também ela, a cidade, como os álbuns de família, é feita de luz, de matéria e de fantasmas. Quando se vêem as janelas entaipadas ela explica o que Ele lhe ensinou: Fechadas para a posteridade. Reservada para uma pessoa da próxima geração que talvez ainda não tenha nascido. Um pousio. Uma expectativa. Regressa a casa onde acaba por não concretizar o filme.
(Tela preta.) Volta a mulher presa entre as sombras de videira numa bela tarde de sol. Seguem-se, no álbum aberto, os seus avós, a sua mãe, um tio, uma tia, uma senhora que talvez tenha perguntado, olhando para a sua casa: não se pode deitar tudo abaixo e eles que construam de novo? Ou, a pedir antes de morrer: enterrem-me com as chaves de casa, por favor. Tudo se prolonga num conjunto de fotografias que compõem um passado pronto a ser desmontado, ordenado e retomado. Mas eles, aqueles seres desaparecidos, enterrados, cremados, transformados, continuam presos nas imagens, incompreendidos pela sua descendência. Onde antes era este lindo jardim agora há um jardim de pregos, continua. Foi um dia de primavera, eu lembro-me mas ainda não tinha nascido. Eles chegaram de camioneta e estenderam a toalha no jardim do filme.
Já não percebemos nada. Quem filma, quem narra, o que já foi ou o que está a ser. Sabemos, sim, que tudo existe no jardim do filme, que tudo é susceptível de ser real na fantasia da imagem. Porém, se a phantasía nos remete para a capacidade de imaginar, de projectar uma forma onde nada existe, o termo que vem do grego phainomei ― que origina o “fantasma” ou o “fenómeno” ―, significa “eu apareço”. Algo que vem ter connosco mais do que algo que parte de nós. As personagens que nos vãos sendo apresentadas, como figuras-cristais ou como prisioneiros em dimensões inalcançáveis, não são mais que esse desdobramento bidirecional (barthesiano) que anima a Fotografia e faz com que mediante Ela, consigamos lidar com esses mesmos fantasmas. E nós, seres munidos da capacidade de registar momentos, quando dançamos dentro do nosso desespero, em rituais estranhos, alegres e às vezes profundos, bebendo da cidade o que escorre das fontes e das chuvas ácidas, não seremos também, nos raides nocturos e frios, com as nossas máquinas amestradas, apenas espectros de luz que vão e que voltam, ou narradores ansiosos por dar um sentido qualquer aos nossos dias de cada vez que o sol brilha?
(Tela preta.) Mais um dia. Domingo. Dia de ressaca. Fico em casa, não saio. Está um dia bonito. Sei que na marginal podia ver os barcos flutuar, mas para quê? Não saio de casa, mando lá a minha câmara de filmar. Quando regressa, mostra-me. Ronrona, cansada. Reparo nos olhos. É o meu sono, e eu entrego-me. O meu filme fica para a próxima.1
1 “I wish instead of a camera I had a fly” é um filme de Cláudia Craveiro Santos de onde retirei, ipsis verbis, todos os trechos em itálico.