O mar é a mais líquida, a mais extensa e a mais habitada das metáforas. [Transparente, mas parece azul por reflexo do céu. Também pode ser verde, depende das algas transportadas ou do grau de poluição.] Tem os abismos do subconsciente, a metamorfose contínua da superfície. Tem grutas e recifes de coral. Destroços de naufrágios, despojos da humanidade a boiar. Às vezes, convulciona-se, outras, estagna-se. [Erguem-se vagas que se elevam a dezoito metros de altura, outras calmarias de tédio e sudação.] Em poucos minutos ensaia-se uma tempestade, emissária das fúrias dos deuses, depois tudo se dissipa como uma bruma imponderável. Recomeça sempre, ondulação sem repouso, em cada onda um reinício do ciclo eterno, com a cadência de um verso. Tudo transita, tudo recomeça, tudo se dissolve, tudo se funde na ambivalência. É povoado por excêntricas criaturas, cardumes, espécies comedoras e espécies comidas, anémonas, medusas, crustáceos, florestas submarinas, sereias, baleias gigantes. É navegada por Caronte, Jonas devorado pela baleia e depois vomitado, por Ulisses, Calipso e outros argonautas. O mar é literariamente arável.
(Ana Margarida de Carvalho, Que importa a fúria do mar. Lisboa: Teorema, 2013, pg 137).
Inúmeras personagens cumprem nele os seus destinos: Ulisses materializa nele o seu nostos, o regresso à sua Ítaca; Ícaro , o imprudente filho de Dédalo, despenha-se nele, quando as asas de cera que o pai fabricara para ele escapar do labirinto perfeito se derretem com o calor do sol; Ahab, cego pela vingança, percorre-o até à morte em busca da grande Baleia Branca que lhe esfacelara a perna e cortara o rosto; o velho Santiago trava com o espadarte a luta da sua vida para provar que ainda é capaz de pescar um grande peixe em la mar, sim, porque para ele o mar será sempre feminino; Charlot atravessa-o num navio bamboleante em busca do american dream que, afinal, só existia nos seus sonhos de vagabundo; os marinheiros do Potemkine cruzam-no em luta pela liberdade; os pescadores pobres de Stromboli caçam nele o atum que esquartejam sob o olhar de uma Bergman em busca de salvação; ao romper do dia, sob o voo silencioso da águia do Apocalipse, Antonius Block trava, junto ao mar, o derradeiro jogo de xadrez com o Ceifeiro de manto negro; três lances bastarão para que o cavaleiro sofra xeque-mate. Tudo se anunciara já, quando o cordeiro abriu o sétimo selo e se fez no céu um silêncio de meia hora: um inelutável, definitivo e irreversível silêncio. No final de uma longa fuga solitária em direção a um mar que nunca conhecera e a que agora vira as costas, Antoine Doinel fixa o olhar na câmara, isto é, em mim, em nós, no mundo todo. Que sentidos se desprendem daquele rosto que me olha e me interpela, no meu lugar de espectador?
Agnès, pelo contrário, passeia tranquila, serenamente, em frente ao mar, nas praias dos seus 80 anos.
Ao mesmo tempo, isto é, antes e para além de qualquer tempo mensurável, um navio de sombra rasga, silencioso, as águas do mar. Transporta consigo Nosferatu, o estrangeiro, que traz no corpo a morte e no peito o rosto de Ellen, que sabe de cor, e que se dissolverá em pó, ao primeiro raio de sol da manhã, tocado pela luz de uma paixão irredimível.
Sozinha, Ellen aguarda na praia, em frente ao mar. Não olha para as dunas nem para terra, por onde, de regresso, se apressa Hutter, o marido; olha o mar, que lhe promete a peste, o desejo, a entrega absoluta e a morte. Hutter deseja dinheiro, foi por isso que partiu. Nosferatu deseja Ellen, é por isso que deixa o seu castelo, nos Cárpatos, e chegará ali, à cidade de Wisborg, como estrangeiro, no navio de sombra. Ellen deseja o desejo, a entrega absoluta, incondicional. É por isso que espera na praia, de olhos voltados para o mar. O mar é a estrada de água que a separa de Hutter e a liga, sem remissão, ao inaceitável, porque estrangeiro na cidade e por isso colocado no lugar do outro.
No encontro com o desconhecido, o desfigurado, esse absolutamente outro, o vampiro que representa a peste e não tem direito a existir na cidade onde aporta, o resultado só pode ser o reconhecimento mútuo ou a morte. Quem encontra outrem apenas pode dirigir-se-lhe pela violência mortal ou pelo dom da palavra em seu acolhimento, ensinou-nos Blanchot.
Na perspetiva de Lacan, os vampiros são criaturas de pulsão, não de desejo. Mas o estrangeiro que as águas do mar transportaram para a cidade de Ellen não obedece a este modelo e por isso ser-lhe-á fatal o desejo que sente por Ellen, a mulher morena que bem poderia dizer, como a amada do Cântico Cânticos, ao dirigir-se às mulheres de Jerusalém,
Negra sou e bela, filhas de Jerusalém,
Como tendas de Quedar, como peles de Salomão.
Não me olheis porque sou negra / Porque [foi] o sol me olhou.
E mais a diante:
“No meio dos meus seios ele passará a noite” (1:13),
diz a amada,
“Na sombra dele desejei e me sentei
E o fruto dele era doce na minha garganta (2:3),
Pois eu estou ferida de amor (2:5)
A mão esquerda dele estará sob a minha cabeça
e a mão direita dele me agarrará “ (2:6).
(Tradução de Frederico Lourenço)
Poderá parecer estranho, ou mesmo insensato, estabelecer um elo entre o mais belo dos poemas de amor e a obra-prima de Murnau. Mas só poderá estranhar quem nunca se tiver interrogado sobre a estraneidade deste poema erótico no contexto dos “Livros sapienciais”do Antigo Testamento ou que nunca tenha olhado para o plano sublime, o mais belo do filme, em que a sombra da mão de Nosferatu desce em garra sobre o peito ofegante de Ellen, retesado como em orgasmo, apertando-o e nele permanecendo até que o mais improvável dos amantes se perca por amor como o mais comum dos mortais:
Põe-me como selo no teu coração,
(diz a amada),
Como selo no teu braço.
porque forte como a morte <é> amor (8:6).
Ao nascer do dia, consumado o desejo, ambos se dão à morte. A mão em garra do desfigurado, do estrangeiro que Ellen escolhe para acolher no seu leito, reconhecendo a alteridade do outro e com esse gesto afirmando a sua própria alteridade, aquele que gravara o seu selo no peito de Ellen, grava-o agora no seu próprio peito. De pé, oferecendo-se ao sol da manhã, dissolve-se em pó, tocado pela luz de uma paixão irresgatável.
O negrume do mar anunciara a sua chegada, o canto matinal do galo anuncia a sua partida, ao primeiro raio de sol da manhã. Aquele ser outro, tão absurdamente outro, não morre, porém, com uma estaca cravada no coração, como um vampiro. Os vampiros, morrem, como sabemos, com uma estaca que lhes cravam no peito. Nosferatu morre como um homem que leva mão ao peito e aceita a ferida fatal.
Aquele estrangeiro, tão absurdamente frágil e tão absolutamente Outro, escolhe não ter lugar neste mundo.
Anula-se diante da luz. Como a planta que Bulwer mostrara, na sua aula, torna-se um ser translúcido, sem substância, quase um fantasma.
A morte que ambos escolhem manifesta-se como a impossibilidade por excelência, um “poder não poder”, como pode ler-se em Lévinas (Lévinas: 45, apud Byung-Chul Han: 82), “esse acontecimento em relação ao qual o sujeito renuncia a todo o heroísmo do si mesmo, a toda a capacidade, a toda a possibilidade, a toda a iniciativa”.
Tal como no Cântico dos Cantos, o amor é tão forte como a morte, mas não mais forte do que ela. O amor não vence a morte, porque, escreve Levinas, [NOTA: Levinas, La mort et le temps], isso seria conferir a uma perda um sentido que a tornasse suportável. Por isso, nenhum deles, nem o amor nem a morte, triunfa sobre o outro. A morte que me diz respeito, escreve ainda Levinas, não é a minha, mas a do Outro a quem amo. A morte da amada ou do amado origina no que sobrevive uma culpabilidade sem falta. Mas ainda que a morte me dilacere, ela não vence o amor e este não vence a morte. E, no entanto, a morte não é um puro nada. Alguma coisa persiste: o reconhecimento do Outro, exposto na brutal deformidade do seu corpo, na sua estraneidade absoluta.
Ellen não tem uma unknown illness, como nos diz o narrador da história [minuto 38]. Nosferatu traz para o cinema a consciência historicamente nova e politicamente perturbadora da sexualidade feminina, a afirmação do desejo de Ellen por Nosferatu sobre o amor assexuado de Hutter por Ellen.
É por isso que o filme de Murnau é muito mais do que um filme de vampiros. É uma história sobre o desejo e a entrega absolutos, sobre a condição do outro e sobre a sua incondicional aceitação por uma mulher que, ao fazê-lo, afirma também a sua incondicional e irredutível alteridade.
NOTAS e REFERÊNCIAS:
BÍBLIA. Volume IV. Antigo Testamento. Os Livros sapienciais. Tomo I, tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Quetzal, 2018.
CARVALHO, Ana Margarida de, Que importa a fúria do mar. Lisboa: Teorema, 2013
HAN, Byung-Chul, A Expulsão do Outro. Lisboa: Relógio D’Água, 2018
LÉVINAS, Emmanuel, Die Zeit und der Andere. Hamburg, 1984.
LÉVINAS, Emmanuel, La Mort et le temps.