Too much nature
(conclusão)
e vídeos no YouTube. Começo numa tentativa de explicar o que a biologia traz de novo: — Tens lá fora as tuas galinhas. Elas põem ovos. Se tivesses galos e fertilizassem os ovos, podemos esperar com um elevado grau de certeza que saía um pintainho do ovo e não um crocodilo. Assim, as espécies são uma forma de determinação, um hábito e um padrão. No entanto, nunca poderás adivinhar o sexo do pintainho, a cor das penas e como será.
De súbito, as galinhas começam a cacarejar, assustadas. Saímos a correr para ver o que se passa. Um animal silvestre, castanho e lustroso, apanha uma das galinhas mais gordas, encurralada numa cerca. O meu amigo corre e fica a escassos metros da criatura, que finalmente foge, largando a galinha, aterrorizada, mas aparentemente não ferida.
— Bem, era disto que estava a falar, – digo, com ar irónico, para aliviar o ambiente.
— Witch! You brought this!– diz ele, ainda meio fora de si. Risos.
— There is too much nature, here… – conclui.
*
The german idiot
Tinha tempo, logo sentei-me. A mesa dele está quase sempre vazia. Começamos a conversar. Nem sei como, contou-me a sua história. Penso que foi pela fonte da juventude.
— Quantos anos tens? Trinta e cinco? – pergunta ele.
— Ah. Mais dez em cima. – respondo.
Atrevo-me: —Tu tens cara de quem descobriu a fonte da juventude.
— Tenho cinquenta e dois. – diz-me.
Ups. Parece velho. Bem mais velho. E novo ao mesmo tempo.
Explicou-me que foi pai aos 18 anos. Que foi um acidente. Que tinha uma ideia benevolente das mulheres e que esta o apanhou. Quatro abortos antes, porque ninguém ficou. Ele achou que tinha de cuidar. Correu tudo mal. O filho era um cuco. A mãe louca. E ele chegou a um ponto em que teve de se vir embora, com uma pensão por invalidez e um acidente nas costas.
Teve um novo amor, que morreu num acidente de carro.
E agora está velho e ninguém o quer.
Pensam que é alcoólico.
Falo do que estou a fazer.
Falo de que não conseguimos compreender o que o outro sente, e esse é um dos grandes desafios da humanidade.
— O quê, empatia?
Embalo.
Falo de como pequenas coisas nos podem levar para caminhos não antecipados, mal-entendidos, como desviar o olhar, explodir em raiva, ou não querer ser tocado.
Olha para mim com muita atenção enquanto falo.
— Tu és tão inteligente.
Eu rio-me às gargalhadas.
Falamos de como se pode ser jovem e velho ao mesmo tempo.
Diz-me que se sente com vinte e cinco anos, mas mais maduro. Não sabe como ter cinquenta e dois anos.
Falamos de que ser jovem não é problema, mas convém não deixar sair a criança sem supervisão dum adulto.
É então que me diz que não percebe nada do que eu digo.
Respondo que já estou habituada. Risos.
Diz-me que é do inglês. Ele é só um alemão idiota. Eu tenho muito vocabulário, palavras que ele não conhece, é só isso.
Está a aprender inglês. Paga 15 euros por mês de internet para se autolimitar nas buscas, senão não consegue parar de noite.
*
Adeus cocó
Há pelo menos um assunto que deve estar encerrado quando chegamos a adultos, mesmo que, mais tarde, possa ser revisitado: o cocó.
Este tema faz entrada no meu pequeno-almoço através das gatas, que insistem em sincronizar as suas descargas intestinais com a minha ingestão de cacau, e às vezes, pão.
A filha duma amiga, em criança, quando fazia cocó, tinha de lhe dizer adeus. Não considero o ato menor. Parece-me muito saudável. É algo que sai do nosso corpo, logo, parte de nós.
Despedirmo-nos do cocó não é assim tão trivial, mesmo para os adultos. Podemos começar por dizer que não queremos falar disso para não misturar extremidades. Afinal, tem de fazer alguma diferença termos a boca numa ponta e o ânus na outra. O que entra e o que sai estão separado pelo esófago, estômago e intestinos, e não queremos contaminar vapores. Há diversos esfíncteres pelo meio, e todos importantes. Confundir a porta de entrada com a porta de saída, seria mais grave do que um mero engano na emergência dum centro comercial, ou das setas que assinalam, no chão, o percurso da Covid-19.
O produto processado deve ser eliminado. Mas onde e como, é bastante cultural. Os holandeses, por exemplo, desenham as sanitas de forma a que o produto possa ser observado. Existem diversos materiais na internet dedicados a analisar essa observação. O que nos indicam as cores, texturas e outros objetos ou seres intrusivos que podem fazer aparições ou revelações. No fundo, observar as nossas excreções pode ser entendido como parte da nossa responsabilidade relativamente ao que libertamos para o mundo. E os holandeses são exímios na atribuição de responsabilidades.
A disciplina sobre as excreções e excrescências do nosso corpo sempre foi um tema importante em sociedades com elevado controlo social. Temos o exemplo ficcional de Gattaca, de Andrew Niccol (1997), onde um dos protagonistas retira escrupulosamente a sua pele morta, pelos e cabelos, repletos de DNA, para que possa trespassar a sua identidade genética a outro. Ou o de Macron, que recusou ter os russos a espiolharem as suas sequências íntimas de pares de bases. Esta vigilância pode ser justificada. Nunca se sabe o que fazem com o nosso DNA. Sei que há pessoas que vigiam o esperma nos preservativos, não vá alguma feminista lésbica roubá-los para uma
(continua)