Número 25

24 de Setembro de 2022

PENÚLTIMA PÁGINA

Intervalo, Especular e Suspensão

Manuel Bogalheiro

(conclusão)

3.

As noções de intervalo e de descontinuidade, para além de estarem implicadas no destino fracassado das estruturas de Dungeness, ecoam também na carga simbólica que lhes foi atribuída enquanto espelhos – pela própria configuração côncava da sua arquitectura e pela função de reflectirem o som. Os dispositivos especulares, desde o rio em que se fixou Narciso até aos espelhos adornados do quotidiano, implicam uma divisão originária na forma como desdobram o real e o multiplicam[6]. O efeito de algo que se reflecte, esse momento em que o real nos é devolvido, corresponde a um exemplo sintomático de uma interrupção. Nesse efeito, deparamo-nos com uma espécie de dobra que não acrescenta nada à realidade, apenas a reproduz ou a devolve. Os espelhos são, assim, sintoma maior dessa divisão originária do mundo, não apenas entre os objectos e os seus duplicados, mas entre a esfera do útil e a esfera do inútil. 

O útil, da ordem do técnico, deve acrescentar alguma coisa ao real, deve construir alguma coisa. O inútil, da ordem do estético, apenas pode reproduzir simbolicamente o real, apenas o duplica, deixando à subjectividade individual a responsabilidade de prolongar o seu efeito. Oscar Wilde deu consistência a este dualismo quando assertivamente escreveu que «toda a arte é completamente inútil»[7]. Antes desta afirmação basilar, o escritor irlandês fundamentara a sua hipótese: «Podemos perdoar um homem por fazer uma coisa útil enquanto ele não a admirar. A única desculpa para fazer algo inútil é que possa ser admirada intensivamente.»[8] 

Prolongando esta leitura, também os espelhos de Dungeness podem reflectir este dualismo e o intervalo que separa os polos do útil e do inútil. Concebidos como dispositivos de alerta, a utilidade destas estruturas residiria em tornar efectivo esse sistema, conseguindo prever os ataques aéreos. Seria esse o seu papel no sentido de acrescentar ou construir algo, de prolongar artificialmente a relação com o real, como qualquer invento técnico o faz. No entanto, no momento em que essa suposta utilidade se deu como fracassada, quando se provaram os erros do sistema, os espelhos sonoros libertaram-se de qualquer carácter utilitário. Foi esse o momento de transformação em que se disponibilizam para, já sem utilidade, serem iconizados ou estetizados como edifícios simbólicos entre a condição de monumento e a de ruína. Nesta fase, apenas poderiam replicar aspectos do real, reflecti-lo ou reproduzi-lo como qualquer objecto estético. Poderiam prolongar a paisagem de Dungeness mas não lhe acrescentariam nada nos termos de uma finalidade utilitária. Com efeito, o nome de espelhos, que seria dado às estruturas, encerra o vaticínio prematuro de que a sua inutilidade apenas as poderia tornar instâncias estéticas. Esquecidas para a estratégia militar, não o seriam através do alcance simbólico que lhes viria a ser atribuído. Esse alcance, entre outros exemplos citáveis, constituiria o mote da obra que Tacita Dean dedicaria às estruturas no seu filme de 1999 Sound Mirrors[9]. Ao longo de cerca de sete minutos em fita a preto e branco, o filme de Dean mostra vários ângulos das estruturas de betão, descontextualizando-as da sua possível utilidade inicial para insistir na tensão entre a sua decadência e a sua aura remanescente. O som que acompanha as imagens foi integralmente gravado através de um microfone integrado no espelho maior, oferecendo a possibilidade de testemunhar a acústica que estes monólitos continuam a reflectir do meio envolvente de Dungeness. 

Toby Charlton-Taylor, «Acoustic Mirror», 2011


4.

Apesar do fracasso técnico inicial, os «espelhos» resistiram ao esquecimento e a sua memória foi inscrita numa forma de registo simbólico. Paradoxalmente, terá sido a sua inutilidade técnica a fazer, justamente, com que não fossem esquecidos. Recuperando as ideias de Walter Benjamin sobre a passagem do obsoleto ao estético, os espelhos sonoros de Dungeness foram inscritos num gesto de coleccionismo. Para o autor alemão, o coleccionador é aquele que se interessa pelos objectos que já não funcionam e, nesse gesto utópico de compilação e de admiração, os pode libertar do carácter utilitarista e mercantilista que o elemento cínico da história lhes impõe[10]. A partir da leitura de Benjamin, Rosalind Krauss prolonga essas ideias e acrescenta que «nada traz à luz, de forma tão eficaz, a promessa codificada no nascimento de uma forma tecnológica como a queda na obsolescência dos seus estados finais de desenvolvimento.»[11] O que a nota de Krauss parece acrescentar à tese de Benjamin é que, na concepção dos objectos técnicos, mesmo na fase ainda abstracta do seu planeamento, há uma dimensão estética ou, pelo menos, uma promessa que excede a suposta eficiência das suas funções e dos resultados a obter. E, se tal promessa está contida desde o nascimento de um projecto, é no erro ou na falha que a sua revelação se manifesta mais evidentemente. 

Richard Reader, «Rear of 30 foot sound mirror», 2010


A concepção dos espelhos sonoros de Dungeness, mesmo que tenha sido desenvolvida no âmbito de uma estratégia militar, certamente que não deixou de reflectir critérios que não foram estritamente funcionais. Poder-se-á pensar, por exemplo, na sensibilidade ao lugar e à paisagem de Dungeness, nas condições em que tal inserção aconteceu, ou na configuração que o seu desenho arquitectónico representa no prolongamento daquele lugar. No entanto, esses critérios manifestam-se de uma forma mais evidente quando as questões funcionais são eliminadas ou dadas como falidas. É nesse reenquadramento que as estruturas expõem a rede de ligações que não existia antes do seu aparecimento e que persistiu para além da sua capacidade de operar tecnicamente. A falha técnica veio adensar a reticulação de várias realidades que se reflectem simultaneamente: passado e presente, técnica e estética, eficiência e admiração, desvio e expansão. São estas ligações, já perfeitamente excluídas da ordem do técnico, que permitem encarar aquele local colonizado pelos espelhos sonoros como um ponto de excepção[12]

Eric Jones, «Sound Mirror», s./d.


5.

Hal Foster, num texto sobre o impulso arquivístico da arte contemporânea, considera os espelhos sonoros de Dungeness, mediados pela câmara de Tacita Dean, uma visão futurista falhada: ao serem estetizados «servem como arcos encontrados de momentos perdidos em que o aqui e o agora da obra funcionam como um portal possível entre um passado inacabado e um futuro reaberto.»[13] A afirmação de Hal Foster joga com a heterogeneidade da linha do tempo e com o seu carácter sempre incompleto ou, mais radicalmente, com algo que possa exceder essa linha do tempo. É nesse excesso que se pode considerar o trabalho da arte. Se a técnica, nos constantes esforços em prol da eficiência dos resultados, tenta encurtar os intervalos, a estética apenas os tenta suspender, revelando a insuficiência da medida cronológica. Nesse gesto de suspensão, de carácter descontínuo, tal como os espelhos que dobram o real e apenas o replicam, os objectos, os edifícios, os monumentos ou as ruínas podem ser percebidos através da multiplicidade de ângulos cronológicos que forma aquilo que foram e aquilo que não chegaram a ser. Voltando a Duchamp, e às suas famosas notas sobre o processo criativo, «a luta em direcção à realização é uma série de esforços, de dores, de satisfações, de recusas e de decisões que não podem nem devem ser plenamente conscientes»[14].

Apesar das tensões e das contradições implicadas, aquilo que foi realizado é, no entanto, aquilo que permanece. A suspensão, com tudo aquilo que pode revelar esteticamente e com todo o seu poder de questionamento, não pode ser permanente pois, nesse caso, perderia o seu efeito. O duplicar do real, que a arte trabalha, confronta-nos também com a importância de, através do trabalho da técnica, se continuar a acrescentar algo ao real, de construir e de o moldar tectonicamente – mesmo com a vicissitude do erro. É esse acrescentar que, em conjunto com os fracassos, constitui o continuum da linha do tempo. A marca no horizonte dos velhos espelhos sonoros de Dungeness persiste na reevocação desse impulso construtivo ou tectónico. A solenidade com que resistem à corrosão do tempo relembra-nos que a nossa existência depende das realizações e do que delas conseguimos reter, mesmo quando falharam. De outra forma, bloquearíamos no intervalo da suspensão ou dissolver-nos-íamos na linha do tempo[15]. O fazer, mesmo com a possibilidade de falhar, é o derradeiro gesto na luta contra esse abismo da dissolução no tempo ou contra a hipótese, talvez insuportável, de que se o presente tivesse limite certamente estaria dissociado do passado.

Manuel Bogalheiro é licenciado e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior. Presentemente, é bolseiro da FCT e desenvolve uma tese de doutoramento em Ciências da Comunicação (Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias), na FCSH-UNL, com um projecto em torno de uma teoria dos objectos e das suas relações com a técnica e com a estética, sob a orientação de José Bragança de Miranda.

Footnotes

  1. ^ Dean, Tacita. (2003). «Sound Mirrors» in Selected Writings. Paris: ARC/Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, n.p.    
  2. ^ O projecto foi realizado no âmbito do programa britânico Air Defence Experimental Establishment e apoiava-se, em grande medida, nas investigações científicas de William Sansome Tucker. Cf. Scarth, Richard N. (1999). Echoes From the Sky: A Story of Acoustic Defence. Hythe: Hythe Civic Society.
  3. ^ A expressão é emprestada de Gilbert Simondon, que a desenvolve extensivamente ao longo do seu livro Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 1989.
  4. ^ Duchamp Marcel. (1957). «The Creative Act». Art News, Vol. 56, n.º 4.
  5. ^ Certamente que os radares, que substituíram os espelhos, também continuaram a deixar dimensões do real por mapear ou por monitorizar.
  6. ^ Jorge Luís Borges fez dos espelhos um dos temas principais da sua obra literária. Entre vários excertos que se poderiam citar, surge-nos com particular relevância no sentido deste ensaio, a célebre passagem «o espelho e cópula são abomináveis pois multiplicam o número dos homens» («Tlön, Uqbar, Orbis Tertius», Ficções. Lisboa: Quetzal Editores, 2013) ou os versos do poema, justamente intitulado Os Espelhos, em que sobre eles escreve: «Infinitos os vejo, elementais / Executores de um antigo pacto / Multiplicar o mundo como o acto generativo / Insones e fatais».
  7. ^ Wilde, Oscar. (1890). The Picture of Dorian Gray. Oxford: Oxford University Press, 1981, p. XXIV.
  8. ^ Ibid.    
  9. ^ Dean, Tacita. (2003). «Sound Mirrors» in Selected Writings. Paris: ARC/Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, n.p.
  10. ^ Cf. Benjamin, Walter. (1931). «Unpacking My Library» in Illuminations (Tr. Harry Zohn). London: Fontana, 1973.
  11. ^ Krauss, Rosalind. (1999). A Voyage on the North Sea – Art in the Age of the Post-Medium Condition. London: Thames & Hudson, p. 45.
  12. ^ Sobre esta excepcionalidade local de Dungeness, Tacita Dean escreve, no texto de apresentação da sua obra Sound Mirrors: «It is an empty desolate place, and I’m sure it is this desolation that makes Dungeness so utterly attractive: that in its emptiness it can become so full». DEAN, Tacita. (2003). «Sound Mirrors». Selected Writings, Paris: ARC/Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, n.p. 
  13. ^ Foster, Hal. (2004). «An Archival Impulse». October, n.º 110, Fall 2004, p. 14.
  14. ^ Duchamp, Marcel. (1957). «The Creative Act». Art News, Vol. 56, n.º 4. 
  15. ^ O receio em torno da hipótete de dissolução no continuum do tempo prende-se, no limite, com o carácter imprescindível da memória. W. G. Sebald sintetizou magistralmente a questão: «And yet, what would we be without memory? We would not be capable of ordering even the simplest thoughts, the most sensitive heart would lose the ability to show affection, our existence would be a mere neverending chain of meaningless moments, and there would not be the faintest trace of a past. How wretched this life of ours is! – so full of false conceits, so futile, that it is little more than the shadow of the chimeras loosed by memory.» Sebald, W. G. (1995). The Rings of Saturn. Frankfurt: Eichborn / London: Harvill Press, 1998, p. 255.