Número 28

28 de Janeiro de 2023

DOIS PARES E MEIO DE ASAS

Joan Didion e o gato que adormece nos sapatos dos nossos mortos

MARTHA MENDES

“Life changes fast. Life changes in the instant. You sit down to dinner and life as you know it ends

[A vida muda rapidamente. A vida muda num instante. Sentas-te para jantar e a vida, como a conheces, termina]”.

Joan Didion, em “O Ano do Pensamento Mágico”


Entre o Natal de 2003 e o verão de 2005, Joan Didion, uma das mais importantes vozes literárias contemporâneas, dos Estados Unidos, fez uma solitária viagem pela estrada do luto. Viu o marido – o escritor John Dunne, com quem foi casada mais de 30 anos – morrer de ataque cardíaco, uma semana depois de a filha ter sido internada, em cuidados intensivos, fruto de uma pneumonia. Dunne morreu à mesa, enquanto ela estava a temperar a salada para o jantar. Meses mais tarde, outra morte anunciada: a única filha, Quintana, entra em coma. O corpo que ajudou a crescer, a mulher que ajudou a construir, desliga-se. Entre um evento e o outro tinha passado pouco mais de ano e meio. É esse período que a jornalista e escritora relata, brilhante e detalhadamente, no livro ao qual, poeticamente, deu o nome de “O Ano do Pensamento Mágico”.

“Eliminador”, na tradução que Hugo Gonçalves fez para a Editora Cultura (3ª Edição, 2022), ou “obliterative”, na versão original, em inglês, língua nativa da autora: é com estas palavras que Joan Didion resume a dor da perda, um espaço desconhecido. “Um lugar que nenhum de nós conhece até o alcançarmos. Antecipamos (sabemos) que alguém que nos é próximo pode morrer, mas não olhamos além dos poucos dias ou semanas que se seguem imediatamente à morte. Interpretamos erradamente a natureza desses poucos dias ou semanas. Podemos esperar, caso a morte seja súbita, um sentimento de choque. Mas não esperamos que esse choque seja eliminador, que desloque o corpo e a mente. Podemos esperar a prostração, ficar inconsoláveis, enlouquecidos pela perda. Não esperamos ficar literalmente loucos ou ser a “mulher calma” que acredita que o marido está prestes a regressar dos mortos e que precisa dos seus sapatos”. “Eliminador”. “Obliterante”, até no sentido médico da expressão: do que obstrui, fecha pouco a pouco, por aderência, as paredes de um órgão. Uma ausência que nos entope – não é a perda, é a ausência. A perda é localizada, ocorre em determinado instante e lugar, é um momento; a ausência é eterna. Levanta-se connosco da cama, todos os dias, senta-se connosco à mesa, para sempre – acompanha-nos, por mais que nos pareça que estamos sós. Como o silêncio.

Os especialistas dizem-nos que o luto é uma reação emocional a uma perda significativa (de uma pessoa, um vínculo ou uma experiência), falam-nos das diferentes fases do processo: a negação, a raiva, a negociação, a depressão, a aceitação. Falam-nos da sua urgência e necessidade para que a vida retome: sofrer para renascer. Um parto violento, inevitável, sem anestesia. Recomeçar depois da dor. E todos parecem reconhecer que o luto é um espaço de intimidade, um caminho solitário, sem regras, nem tempos, na procura de um sentido novo. O luto, enquanto fenómeno emocional, parece apontar no sentido do futuro, da recuperação. Mas ninguém nos fala sobre a viúva que guarda os sapatos porque o marido pode, ainda, vir a precisar deles. Ninguém nos fala desse nível da dor, próximo da loucura, que nos leva a resistir à realidade.

A dor que imaginámos era dilacerante e total, tomava o corpo todo, doía na carne e nos ossos. Mas a dor da perda é outra coisa – uma coisa inesperada. “Obliterative”, eliminadora, sim. É de tal forma eliminadora que é impeditiva de si mesma. É uma dor nova, primeva, tão funda, que não deixa que doa tudo o que há para doer. É essa a sua maior perversidade: no limite, a dor serve como prova de vida. Mas o que a perda faz é levar-nos a um nível de anestesia que deixa que o vazio tome conta de tudo. E, com ele, a absoluta incompreensão – a ausência de sentido. A aversão à normalidade, às ruas cheias de pessoas que saíram de casa porque não sabem que a morte anda por ali. A estranheza face ao quotidiano, que passa a ser uma sucessão de experiências da falta de sentido e da inutilidade.

Ninguém fala da sensação de sermos um espectador de cinema, a sentir a dor na terceira pessoa, através de um ecrã gigante que nos conta uma história que não é – não pode ser – a nossa. Uma dor que assola tudo e, sendo tudo o que nos resta, é, no entanto, virtual: não é nossa. Ninguém nos fala dessa fantasia cinematográfica que se apodera de nós e transforma em personagens distantes os que nos tentam confortar, dizendo que a vida continua. Não saberão que não continua, não pode continuar? Não nos falam do opiáceo que resulta da negação – uma negação tanto da perda, como da superação desta. “A vida continua”, repetem-nos, numa mentira que todos reconhecemos. Não, a vida não continua depois da morte. O luto é um manifesto anti-continuidade. A vida, depois de atravessada pela morte, torna-se outra coisa.

O poeta que melhor descreveu o regresso à normalidade (possível), depois da morte, foi o Manuel António Pina no poema “Sétimo Dia” – um poema que dedicou ao seu editor e amigo falecido, Manuel Hermínio Monteiro, da Assírio & Alvim. “Voltámos, um a um, da tua morte/para a nossa vida como quem regressa a casa/de uma longa viagem./Para trás ficaram recordações, países,/e agora é como se te tivéssemos sonhado”. A morte é um lugar de onde se regressa para uma realidade onírica. Ela inverte os papéis, confunde o passado e o futuro, faz-nos duvidar do real. “Ainda ontem estávamos sozinhos diante do Horror/e já somos reais outra vez./A própria dor adormeceu no nosso colo/como um animal de companhia”. O luto é um animal de companhia. Um gato que se insinua dentro de casa, caminha pelos corredores, roçando o pêlo nas paredes, arranhando tudo à sua volta, mas permitindo, em certos dias, que o acariciemos. É um gato que caminha, sedutor, quase em pontas, até ao quarto, esse território íntimo, e ao ver a porta do armário entreaberta, não tem pudor em entrar. Vai adormecer lá dentro, tal como adormece ao nosso colo. No meio de sapatos que já ninguém pode calçar.