Número 4

15 de Maio de 2021

CAIXA ALTA

João Ferreira Oliveira: Leituras contra a solidão

ANDREIA M. SILVA
fotografia de Jorge Cunha


Naquele tempo, o mundo chegava sobre rodas numa carrinha Citroën. A história das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, que nasceu em 1958 e se extinguiu em 2002, é a de milhões de pessoas que de outra foram não teriam lido o que leram, numa época em que os hábitos de leitura eram (ainda) mais escassos.

Por estes dias, João Ferreira Oliveira tem sua a carrinha Citroën estacionada numa dessas aldeias onde o xisto ainda cobre as casas e ruas íngremes. A carrinha de agora tem a mesma marca, está forrada de estantes e de livros, mas a missão é diferente. João é jornalista de viagens e escritor. Sabe o valor da palavra, essas que “pesam toneladas” e têm “a espessura de montanhas”, como escreveu Raúl Brandão.

Nos meses de confinamento deu por si muitas vezes a pensar nas crianças (e não só) que vivem nos lugares mais isolados, com o acesso ainda mais dificultado aos livros. Fez-se à estrada e, durante um mês, João vai percorrer o Interior do país ao volante de uma biblioteca itinerante. Na bagagem leva cerca de 500 livros e o desejo de partilhar histórias e leituras e, de alguma forma, a vontade de romper a solidão daqueles que estão “aparentemente” longe de tudo. O foco é a literatura infantil, mas as portas e as estantes da carrinha estarão abertas a toda a gente, incluindo os mais velhos. Enfim, “onde houver público e vontade de ouvir e contar histórias”.

Pelo caminho, fará leituras em escolas, no meio da rua, no centro das aldeias onde as pessoas, apesar de isoladas dos grandes centros urbanos, têm em si a sabedoria dos tempos, da natureza, da vida.

Os 500 livros que leva serão oferecidos ao longo da viagem. O objetivo é regressar a casa com a carrinha vazia, “mas cheia de histórias.”

Depois das Aldeias do Xisto, a viagem percorre a Rota da Terra Fria (Trás-os-Montes), o Alentejo Interior e o Algarve Interior. A viagem vai ser registada, dando origem a um conjunto de reportagens e uma série documental de quatro episódios. E a um livro. 


— Como surgiu a ideia de concretizar este projeto?
— Surgiu logo no início da pandemia. O confinamento foi difícil para todos, mas dei por mim a pensar muitas vezes nas crianças (e não só) que vivem nos sítios mais isolados. As livrarias e bibliotecas estão concentradas nas cidades, por isso se o acesso ao livro já era difícil, mais difícil ficou. Até porque muitas das bibliotecas itinerantes (sobretudo dinamizadas pelas câmaras municipais) tiveram que deixar de fazer os seus habituais percursos. Senti que precisava de fazer algo para combater esta realidade, dentro dos meus recursos e recorrendo às minhas ferramentas: a escrita e a leitura. É tudo o que sei fazer na vida, na verdade. E depois há um lado egoísta: também eu estava com vontade de voltar à estrada.


Quais são as ações que vai realizar no interior? Algumas sessões nunca estarão marcadas…
— Vou ler em escolas, mas não só. Serão organizadas sessões de leitura ao luar, no centro das aldeias, um pouco por todo o lado. Mas há coisas que não estarão marcadas e que vão depender daquilo que a estrada nos der. Não se pode (ou deve) ir para a estrada sem marcar nada, mas também não faz sentido partir com tudo estudado e o tempo contado ao segundo. Tem que haver lugar para o imprevisto.


Já conhecia alguns dos locais onde vai estar. O que espera encontrar?
— Conhecia, sim, e não foi acaso que os “escolhi”. São sítios distantes, isolados, que sofrem desse “mal” chamado Interioridade, mas que têm características muito próprias. Na relação com o turismo, por exemplo. Trabalho há muitos anos nesta área e sei o mal que o turismo pode fazer a um determinado destino, mas sei também como um turismo responsável pode ajudar a que uma determinada comunidade não desapareça. Combater o isolamento, dar mais mundo e mais vida às pessoas que lá vivem.


Leva 500 livros e espera regressar sem eles. A quem os deixará?
— Às crianças, aos adultos, a quem quiser e a quem os agarrar.



fotografia de Jorge Cunha