Número 25

24 de Setembro de 2022

CAIXA ALTA

José Luís Santos: o olhar de um viajante insaciável

ANDREIA M. SILVA

José Luís Santos


Foi através dos livros – sobretudo os de História – que o mundo se tornou menos opaco para José Luís Santos. Nas tardes passadas na biblioteca da Lousã, a leitura foi-lhe aguçando o espanto, indicou-lhe outras portas, mostrou outros caminhos possíveis. Tinha 19 anos (em 2000) quando fez a primeira grande viagem e nunca mais deixou de correr mundo.

Fez interrails e foi aluno Erasmus em Siena, em Itália Depois (já professor de História e amante da fotografia), viajou pela Europa, por quase todo o Médio Oriente, Índia, Tailândia e Camboja, Cáucaso, ou pela Ásia Central. Regressou à China ainda antes da pandemia. Este ano percorreu o Paquistão.

Um dia, numa viagem a Xangai, leu a seguinte frase: “um homem percorre o mundo em busca do que precisa e volta a casa para o encontrar”.

É à Lousã – o lugar onde se deixava perder sempre que andava na bicicleta, regressando já noite escura – o lugar a que chama casa. Aquele será sempre o seu lugar de chegada.


– Começo por perguntar:  professor, fotógrafo ou viajante?

– Sou professor por vocação, fotógrafo por paixão e viajante por herança hereditária do meu pai. Replico aqui as ideias que partilho na primeira aula que dou nas escolas, em jeito de apresentação. Sublinho que há três paixões que norteiam a minha vida: a docência, razão pela qual ali estou perante eles, a fotografia e a viagem.

Sem me querer deslocar muito do primeiro eixo, que é o meu ganha-pão, explico-lhes que adoro viajar de câmara fotográfica na mão, de viver histórias que poderão valer a pena serem contadas e registar momentos que me soem a belo. E concluo que tudo isso poderá, e será também, canalizado para eles nas aulas que iremos tendo ao longo do ano letivo.


– Cresceu na Lousã. O que despertou em si este interesse de correr mundo?

– A Lousã é o meu habitat. Foi aqui que cresci e é aqui que gosto de estar. Talvez o gosto pela viagem tenha sido uma das melhores dádivas do meu pai, mas, a par da vertente genética, veio o meio envolvente e a minha curiosidade, gosto ou necessidade de sair desta terra. Comecei desde novo a frequentar a biblioteca e a folhear livros e revistas com cenários longínquos, e já na altura sentia que me cativavam. As paixões não são para se explicar, mas para se sentirem e estimularem, e foi isso que fiz. Os meus livros escolares de História foram igualmente determinantes. Tinha uns 12 anos quando me deleitava a sonhar enquanto os meus olhos percorriam de fio a pavio as imagens das pirâmides do Egipto, da Grande Muralha da China ou da Torre Eiffel. Foi aí que decidi que queria ser professor de História. Quando visitei todos esses lugares, lembrei-me desses momentos e dei-me por satisfeito por ter cumprido alguns dos primeiros objetivos da minha vida. Independente de onde nascemos, temos de criar condições para sair e fazermo-nos ao mundo. É um desafio apaixonante.


– Lembra-se da sua primeira viagem – ainda que imaginária? Como quando foi?

– É difícil apontar no tempo e no espaço quando foi a minha primeira viagem. Poderia até dizer que já viajava antes de vir ao mundo. Mas escolho um episódio que ocorreu quando tinha uns três anos. Certo dia, fui com os meus pais, tias e o meu irmão buscar lenha a um terreno que tínhamos num bosque perto de uma aldeia chamada Cume. A dada altura, desatei a correr com todas as minhas forças pela encosta abaixo. A minha mãe teve de fazer das tripas coração para me conseguir apanhar, desesperada por correr o risco de perder o seu filho mais novo. Quando me estava a dar um ralhete, conta-me, eu argumentei que apenas queria vir a casa buscar uma gadanha para os poder ajudar. Foi um belo ato falhado que talvez ali tenha definido uma parte do que eu viria a ser, até porque, na realidade, eu tinha-me enganado no caminho e estava a afastar-me o mais que podia de casa. Talvez fosse uma predestinação.

A verdade é que, à minha maneira, para a altura, nunca mais parei de viajar. Quando tive a minha primeira bicicleta, tentei pedalar para o mais longe possível, descobrindo novos caminhos, perdendo-me, voltando para casa já de noite escura, sabendo que essa pequena loucura me ia sair cara. Mas o desejo de evasão estava lá, e não descolava, incrustando-se cada vez mais. Com a idade, vieram as viagens de comboio para Lisboa, as primeiras saídas para o estrangeiro, os primeiros interrail, a experiência Erasmus vivida em Siena, em Itália, as primeiras incursões pelo Médio Oriente, e depois o salto para o resto do globo. Lao-Tsé ensinava que uma grande viagem começa com um pequeno passo. Aqui, foi uma lógica de espiral que se desenrolou da Lousã para o mundo.


– Foi graças à fotografia (através de prémios que foi ganhando) que começou a viajar…

– Em 1997, comprei por uns míseros cinco contos (hoje 25€) a minha primeira câmara fotográfica para captar instantes de uma visita a Roma. O resultado da minha primeira vez foi um clássico: saldou-se num desastre. Mas no ano seguinte já estava a comprar uma melhor, na Feira da Ladra. Há males que vêm por bem. Tive uma má nota a Francês no 10º ano e não pude entrar na Universidade quando pretendia. No ano letivo 1999/2000 tive tempo para fazer outras coisas, naquilo que considerei ser o meu “gap year”. Arranjei uma máquina semiprofissional e comecei a fotografar mais a sério na mesma altura em que iniciei a minha colaboração no Jornal Trevim, o quinzenário de informação da minha terra. Comecei também aí a aprender a delapidar melhor a minha escrita.

Em junho de 2000 participei num concurso de fotografia em Coimbra e ganhei o Primeiro Prémio e uma Menção Honrosa. Com esses 75 contos (375€) comprei um bilhete de interrail e fiz-me sobre carris pela Europa fora. Foi a minha primeira grande viagem.


– Qual foi o país ou lugar que mais o surpreendeu? E aquele que mais o desiludiu?

– Todos os países, à sua maneira, me surpreendem. Vou recordar os casos mais felizes, até porque foram muito poucos os lugares que me dececionaram.

Quando fui estudar para Itália, tinha uma opinião muito pouco abonatória sobre a Turquia. Isso prendia-se por questões políticas, pelos atropelos aos direitos humanos, nomeadamente no que toca ao povo curdo. Conheci outros alunos Erasmus desse país, que me lançaram o repto de me despir de preconceitos e de o visitar. Aceitei o desafio, e em meados de julho de 2003 estava a chegar a Istambul de comboio num ambiente que, para mim, foi mais do que mágico. Tudo estava no sítio certo, como se alguém muito perfecionista andasse a montar o cenário com que esse país me receberia. Contemplar um pôr-do-sol esplendoroso, personificado numa bola de fogo que se deitava sedutoramente por detrás do Bósforo, já com as vozes esganiçadas dos muezzin a chamar os fiéis para uma das cinco orações diárias foi uma concertação tão rara quanto bela. Ainda hoje, a antiga Constantinopla é a minha cidade de eleição. Mas a minha vitória não fora chegar ali, já que era um no meio de outros estrangeiros que ali findavam o seu percurso, como um ioiô, antes de regressar à sua União Europeia. O passo a sério foi apanhar um ferry para a parte asiática e aventurar-me por ali, no que para muitos era um território inóspito, como se fosse habitado por bárbaros.

Conheci gente muito boa, de uma humildade e pobreza evidentes, mas com um coração mais rico que o FMI. Sem falarem qualquer língua estrangeira, partilhavam comigo a pouca comida que levavam consigo, prescindindo por vezes da sua parte. No fim, ofereciam-me uma fotografia tipo passe, como quem diz “não te esqueças de mim”. Como ficar indiferente perante tamanho gesto? Aprendi ali o que era a hospitalidade tão característica da cultura islâmica e, no ano seguinte, já estava a aterrar na Jordânia.

Aprendi também que nunca podemos confundir um regime com o povo que habita nesse mesmo país, pois são dois corpos muito diferentes. E é assim que se evita cair em histerismo, como o que se vive hoje no que toca aos russos. Posso dizer que o melhor povo que conheci até hoje é o iraniano, a par do paquistanês. O mesmo já não direi do regime teocrático dos primeiros.


– Quantos países já visitou?

– Não visito países como quem coleciona autocolantes de uma caderneta. Viajo ao sabor do que vou querendo conhecer, ou do que o acaso me proporciona. Não tenho uma contabilidade sobre isso, e há territórios que, simplesmente, nem me interessam visitar. Como já referi, a minha primeira grande viagem foi no ano 2000 quando, com 19 anos de idade, me aventurei pela Europa com dois amigos. Estávamos tão sôfregos por conhecer que andámos numa correria, por exemplo, a visitar catedrais góticas por França. A dada altura, estávamos cansados e já nem tínhamos noção do que tínhamos efetivamente visto. Uma overdose de viagem foi suficiente para perceber que aquele não seria futuramente o meu estilo.


– Entretanto, o seu projeto fotográfico Rota da Seda foi ganhando corpo. Como surgiu a ideia deste projeto? Tem outros projetos que gostaria de realizar?

– Os alicerces do meu projeto da Rota da Seda foram erguidos bastante cedo, em 2004, depois de uma viagem com um bilhete só de ida para a Jordânia, que me levou depois pela Síria e pelo Este da Turquia. No fim desse ano, lembro-me de ter escrito em algum lado este chavão, ainda sem ter grande noção daquilo em que me estava a meter, mas mergulhei mesmo assim de cabeça. Iniciei umas quantas pesquisas e orientei as minhas viagens para onde gostava, seguindo o apelo do Oriente.

Em 2005 visitava o Egipto, dois anos depois regressava à Turquia, mais tarde fiz a primeira de três incursões pela China. Em 2012 apaixonei-me pelo Irão, não dizendo mesmo quando atravessei o Golfo Pérsico e cheguei ao Dubai. Omã escapou-se. Em 2013 vagueei pelo Cáucaso e no ano seguinte passei pelo Líbano, Jordânia, Israel e Palestina. Faltava-me a Ásia Central, sendo assim óbvio o destino do ano seguinte. Tailândia, Camboja, Índia e novas incursões pela Ásia Central se seguiriam. Este ano, dei comigo a realizar um plano já com bastantes anos, quando percorri o Paquistão.


– A que local pertence?

– Eu pertenço à terra onde me sentir bem. Sou lousanense. É à Lousã que gosto de regressar depois de temporadas fora, seja em viagem, seja quando regresso de vez de outra terra em que vivi para dar aulas. Já vivi quase em 30 casas. Tudo tem o seu tempo, e o nomadismo já não está em consonância comigo. Gosto de andar por longe, do outro lado do mundo, não posso deixar de assumir a minha satisfação quando apanho o último voo para o meu país e finalmente ouço alguém a falar a minha Língua, como aconteceu este ano na minha viagem ao Paquistão. Não sou escravo da ideia de viagem, de ter de estar longuíssimas temporadas longe do meu mundo. Sim, o Ocidental. Liberdade também é assumir isso perante mim próprio e perante os outros. A História é feita de ciclos.

Há uns 11 anos, estava a visitar um famoso edifício de Xangai, na China, e no átrio principal constava, numa frase incrustada em metal na parede que “um homem percorre o mundo em busca do que precisa e volta a casa para o encontrar”. Quanto mais o tempo passa, mais sentido me faz aquela inscrição. É uma filosofia do eterno retorno. 



Lago Song Kol – Quirguistão


Caxemira – Índia


Tibete


Em Darvazza, Turquemenistão, à boleiaa do Mongol Rally