Aos meus,
O barco vai à deriva, bêbado e cambaleante, e o que eu pensava ser ressaca não é senão o enjôo de uma viagem em mar alto. Sei, agora, nesta tarde fechada pelos estores, com a luz perpétua do tecto e as costas voltadas de um amor de fingir, que a juventude me arrastou para fora dela, soprando as velas cheias, sem dar conta das proporções do embalo. Descubro na leitura os perigos do mar, mas o maior perigo é o da leitura, se não tomarmos as devidas precauções. A história é de um navio que ruma ao Oriente — para onde iam todos os naufrágios — na metáfora de um jovem que tem na água a némesis do fôlego e no horizonte uma hipótese de riqueza. Vou-me aproximando, a cada página, de uma tragédia anunciada. Vou olhando de soslaio, para fora do livro, e nesse ambiente hostil de uma casa que não é minha, engano-me na aventura, engano-me na façanha, acertando no gume da faca. Como esse herói, angustiava num berço à deriva, com vocês, meus amigos, com água pela cintura, pelo pescoço, com água a cobrir-nos a cabeça. Tanto se nos fazia. Tínhamo-nos esquecido de como era estarmos secos.* Venho à tona respirar. O ar circula no quarto como um silvo de suspensão. O tempo, cá dentro, está mau. Ou pelo menos aparenta um apuro que se fixou nas nuvens que, sem se precipitarem, enegrecem e desmoralizam o nauta mais confiante. Enviaram-nos para o perigo a saber ler poesia, a confiar na noite, a esperar que as cidades nos acolhessem na sua ebulição. A nós, que escorremos como trapos encharcados, tremendo de frio e de medo, não do risco, mas da certeza de que amanhã a neblina continuará a humedecer a nossa cama. Foi como se o mundo se tivesse esquecido de nós, como se não interessássemos a ninguém, como se não fôssemos a parte alguma; precisamente assim; como se estivéssemos enfeitiçados e para todo o sempre destinados a viver naquele porto interior e a ser objecto de escárnio e motivo de riso para as gerações de vadios do cais e barqueiros desonestos.* Não sabemos se aportámos ou se zarpámos, mas é dia e estamos de estores fechados. Talvez queiramos simular o negrume que nos proíbem com tanta luz nas madrugadas. Pergunto-me se deve um herói esconder-se do dia, já que a nós, meus amigos, aconteceu-nos crescer na sombra. Habituados a reconhecer uma amizade no disco dilatado das pupilas aquando da penumbra das palavras, despedimo-nos, um a um, para longe das águas serenas de um rio. Já tinha eu partido para lá do horizonte — lembram-se? — quando encontrei no além-mar um espelho onde derramar o sal. Aquele navio velho estava cansado. Era tão jovem como sou agora, como são vocês, meus camaradas, a quem conto esta aventura.* Sei, agora, que cada um de vós segredou a si mesmo um infortúnio particular, mas na altura julguei-me o escolhido para testemunhar o grande azar que é o mundo. Quanto mais me afastava mais o porão queimava. Quanto mais bebia da viagem mais vivo me sentia. Ó juventude… Que esplendor! Que ardor! Um ardor mais ofuscante do que as chamas a arder no navio, projectando uma luz mágica por toda a Terra, saltando audaciosamente para o céu, para, logo depois, ser extinto pelo tempo, mais cruel, mais impiedoso, mais amargo do que o mar… e cercado, como as chamas do navio a arder, pela noite ínvia.* Pouso o livro e descubro uma outra juventude, no tempo em que não a estimava, julgando-a apenas nas feições mais abrilhantadas – mas será jovem aquele que reconhece uma ferida? E por momentos, provo um novo sabor na língua, desenrolando no palato um passado de imagens vis, confiando sempre naquilo que os meus olhos viam e que me alertavam para o privilégio que é poder andar sobre o fogo — o homem nasce para a tribulação, para navios de água-aberta e para navios que se incendeiam.* E apesar da incompreensão cada vez maior desse lugar político que é o fogo, e da utopia que é o mar, cheguei até aqui sem traumas senão o de não saber qual dos elementos disponíveis podemos atribuir ao amor. Há dias que não vejo senão almas velhas que optaram por viver uma vida a solo, tanto na desatenção que prestam aos outros, quanto na facilidade em que entregam a sorte aos carrascos sedentos de glória. Há outros, graças a vocês que me acompanham, que me enchem os pulmões de ar e que me fazem sonhar apneias nas profundezas azuis das nossas incursões pelo desconhecido. Recordo as noites e os dias de calma em que remámos, remámos, e o bote parecia estar parado como se estivesse enfeitiçado pelo círculo do horizonte de mar.* Lembro-me de não nos contentarmos com a espuma que cobria as praias repletas de gente ao sol, de não suportarmos os cremes e as gorduras que se espalhavam nos corpos, já cadáveres, trazidos pelas modas e pelas marés. De molhar os pés pela primeira vez no gelo; de nos frustrarmos com a verdade (ou a sua impossibilidade); de avistar ao longe uma silhueta de vida, quase exótica, à qual chamámos de ideia. Recordo os rostos exaustos, as figuras abatidas dos meus homens, e recordo a minha juventude e uma sensação que nunca mais tive — a sensação de que viveria para sempre, que sobreviveria ao mar, à terra e a todos os homens; a sensação enganosa que nos conduz a alegrias, a perigos, ao amor, ao esforço inútil — à morte; a triunfante convicção de pujança, o calor da vida numa mão cheia de pó, a chama do coração que ano após ano se esvai, esfria, encolhe e se extingue — e extingue-se demasiado cedo, tão cedo — antes da própria vida.* Volto a pousar o livro e percorro o quarto com o olhar. Gostava de poder subtrair o que de épico se apodera desta história para que ela pudesse ser a minha. Eu, que sempre esperei uma oportunidade para escapar à apatia e à indiferença (queria uma epopeia só para mim, para que pudesse definhar a olhar para ela), apenas me vejo a morrer de inveja de um marinheiro no mar e a recordar, dia após dia, o mais perto que estive de sentir essa soberba líquida: foi no aberto do Mar de Andamão que percebi que o céu e o mar disputam o nível zero da goma fina a lamber a proa, tal como percebi que a aceitação do mal está menos na idade ou na doença do que na coragem com que gerimos essa ténue linha de consciência. Também para mim, o Oriente encerra-se nesta visão da minha juventude. Resume-se ao instante em que abri os meus jovens olhos. E dei com ele após uma fortuna no mar… e era jovem… e vi-o a olhar para mim. E só isto me resta dele! Um instante; um instante de pujança, de romance, de sedução… de juventude!* Desço da cama e enterro os dois pés na areia. As pegadas desenham-se no chão, gravadas para sempre, não fosse o recuo lento de uma onda apagá-las muito em breve. Também eu me fui cruzando com algo tão amplo e letal como um oceano, onde me navego sob tectos sem estrelas, deitado na demora de um leito desconhecido, esse porto onde aguardo que me venham dizer que já não há nada pelo qual valha a pena esperar. Comparo as frotas (cada século com as suas), conto quantas velas se apagaram desde que me fiz ao largo da existência e descubro que o cheiro a maresia — onde fui infante — é o ânimo que me basta para abrir a escotilha. Amigos, nunca nos verão a evitar as águas. Jovens e pobres, no mar que nada tem para nos dar a não ser pancada — e a oportunidade de sentirmos, de quando em vez, a nossa pujança… apenas e só! Não será precisamente disto que sentem saudade?* Fecho o livro. Estou tão submerso quanto o barco que acabou de afundar, neste quarto de estores arriados. Não sei o que fazer com a juventude que me foi dada nos duelos com os mares, por esses invernos fora. Para além disso, a saudade soa a perfume envelhecido e o que eu queria mesmo era partir com vocês todos, outra vez, já amanhã. Amanhã, ou um outro futuro qualquer, onde pudéssemos assistir juntos a essa imagem, reflectida na superfície trémula da água e dos olhos, de um grande incêndio no mar. Dir-me-ão que sim, que podemos dar início aos aprestos, mas os nossos olhos exaustos continuam à espera, permanentemente à espera, ansiosamente à espera de algo da vida, que se esvai enquanto se espera — passa despercebida, como um suspiro, como um lampejo — a par da juventude, da pujança, do romance das ilusões.*
*Joseph Conrad em Juventude.