Como eu costumo dizer, deve escrever-se quando as ideias surgem ou perdem-se as ideias, mas ou se vive ou se escreve, não posso parar de viver para escrever. Começo sempre pelo corpo, como eu costumo dizer, não sou eu, é um poeta que li uma vez, lá está, nunca sabemos se as ideias são nossas ou se as ouvimos e nos apropriámos delas. Começo sempre pelo corpo, ou “Regresso sempre ao corpo”, dizia um poeta. Eu começo pelo teu corpo, pelas tuas nádegas que são como o mundo conhecido. Há uma, redondinha, e quando a estou a percorrer já sei que há outra, e que deve ser igual a esta, redondinha. Como eu costumo dizer, quando se desce uma colina, já sabemos que temos de subir outra, a seguir. A menos que nos percamos no vale, lá está. Há sempre o desconhecido, nas bordas do mundo conhecido, no fundo, atrás. Se percorrermos o fundo, atrás, entramos sem dar conta, no fundo da frente, porque o mundo, como o teu corpo, não tem atrás nem frente, depende sempre do ponto de vista, mesmo que, como é o caso, estejas de olhos fechados. O teu corpo, onde regresso, como diz o poeta, é como o Mar da Palha. Se nos perdermos, temos de olhar para o Cristo Rei, o Redentor, ver as luzes da ponte, pensar, devo estar na Arrentela ou nas filas do Fogueteiro, e deixares-te ir, no pára-arranca. Fui ao Teatro. Deve haver um sinal no Teatro como nesta Ponte. Não se pode entrar com menos de 40! Com menos de quarenta anos. Mas no Teatro não há limite de velocidade, como nas autoestradas alemãs. Há velhinhas, trazidas pelas filhas velhinhas, que devem adormecer suavemente no escuro dos monólogos. Como eu costumo dizer, é bom adormecer num sítio assim, protegido, onde acordas com uma salva de palmas na qual participas sem reservas, porque como os poetas, os atores, as atrizes, merecem tudo, eles e elas regressam ao corpo, mesmo se o texto é mau, eles regressam ao corpo redentor e no corpo redentor dos atores, das atrizes, tu sabes onde estás, no Mar da Palha, Moita, Sarilhos Grandes, Coina. Há cadeiras vazias no Teatro Municipal. Cadeiras Covid, do espetador posto em quarentena. Cadeiras da distância social ainda não, mas em breve virão. Como eu costumo dizer, não há mal que não regresse. Cadeiras da senhora vereadora da cultura e do namorado, convite da direção que não foi respondido. Cadeira do crítico, que não pode vir, mas que escreverá a crítica na mesma, lá está, como tu costumas dizer, estamos tão mal, tão invisíveis, tão longe do nosso público, que qualquer crítica é bem-vinda, tudo menos esta ausência. E se não for crítica, que seja uma referência, uma nota de leitura, duas linhas a dizer “também em cena”. Mas agora que as luzes se apagaram e estou a ver os atores, as atrizes, a minha cabeça está nas nuvens, como eu costumo dizer. Como nas aulas de matemática, Maldita Matemática, lá está. Penso no dramaturgo. Não devia pensar no dramaturgo. O dramaturgo é como a “voz poética”. Morre quando o texto é editado. Morre depois nas mãos assassinas do encenador. Exceto o Brecht, claro. O Brecht não morre na peça. O senhor B.B. é o Autor que não morre. É Galileu. É a Mãe Coragem. É o grito da Mãe Coragem. É a parte boa da Terceira Internacional, a quem se perdoa tudo. Lá está, detesto este Brecht. Mas detesto mais ainda o encenador. Espetador que goste dos atores, das atrizes, como eu gosto, só pode odiar o Encenador. O Encenador ou não existe, ou transformou os atores em marionetes. Que estupidez, o efeito da distanciação, a Verfremdungseffekt, como eu costumo dizer. Não preciso de distanciação nenhuma. Sei muito bem que estou no teatro, que é tudo a fingir, que a atriz não está a beber um vinho branco comprado pela produção, que a face dela é uma máscara, que não há nenhum frango na púcara, o homem não morreu, levantar-se-á e virá à boca de cena agradecer. Não gosto de ser tomado por estúpido, inocente. Sei que o ator, a atriz, representa. Não preciso que represente que mostra que representa. Não preciso que me queiram explicar a luta de classes entre as nove e meia e as onze e dez. Já não a luta de classes. Há agora um programa mínimo. A dignidade. Regredimos tanto que a reivindicação da dignidade é hoje aquilo que nos pode unir. Os palcos sussurram aos espetadores de teatro: dignidade. E por momentos, lá está, acreditamos que vale a pena. Levantamo-nos e batemos palmas. E saímos devagar, sonâmbulos, obedecendo às ordens dos assistentes de sala, descruzando os olhos, a fila A, a fila B, envergonhados por nos juntarmos no hall, rumo aos carros, à estrada, ao streaming.