Número 36

30 de Dezembro de 2023

À SOLTA

Laboratório

RITA ASSUNÇÃO SERRA

As criaturas

O laboratório do Rui tem uma infestação de ácaros. Trata-se certamente de Acarus crossi, os ácaros espoletados pela experiência de Andrew Crosse em 1836, que procurava criar cristais vertendo uma solução química sobre uma pedra eletrificada. Trata-se de um pioneiro da eletricidade, detentor da alcunha “o homem do relâmpago e do trovão”. A capacidade de a eletricidade ser gerada por ação química, e a ideia de que a eletricidade era uma força vital capaz de animar a matéria orgânica, deu origem a um mal-entendido embaraçoso, quando apareceram ácaros em grande número no decorrer da sua experiência. Teria Crosse, inadvertidamente, gerado as criaturas? Apressaram-se a dar o nome dele, crossi, a uma espécie inteira, vinculando-o a uma responsabilidade que não desejara.

Hoje em dia é ridículo saber que o pobre homem foi acusado de blasfémia, e que recebeu ameaças de morte por querer ocupar o lugar do criador. Mas ficou o aviso: não se aproximem demasiado do orgânico. À humanidade cabe a geração de ideias e objetos irresponsáveis. Qualquer transgressão será punida.

Crosse era amigo de Ada Lovelace, fascinada pela matemática e outros domínios. Filha do poeta Lord Byron, foi incentivada pela mãe a perseguir a lógica como antídoto para a loucura do pai. Mas Ada via magia na mais pura lógica. Para ela, a Máquina Analítica de Charles Babbage, que veio a originar os computadores de cartão, não era indistinguível da máquina de Jacquard, usada para tecer as mais belas flores. A questão que ambos deixam aberta é a capacidade de, enquanto seres humanos, sermos afetados por forças e objetos que nos enfeitiçam. Os nossos sentidos são galvanizados e levam-nos a ver coisas que não existem. Quem deve ser responsável pela imaginação? Nós, os materiais ou o feiticeiro? Diferentes entidades colaboram para construir uma ciência poética, que abdica da vontade própria para se deixar afetar, e ver objetos irremediavelmente animados.



Um passe de mágica

Cerca 1820, o filho de um relojoeiro compra um livro por engano e não o devolve. O livro em causa era Scientific Amusements, e o filho era Jean-Eugène Robert-Houdin, que viria a ser pai do ilusionismo moderno. Ao longo de onze capítulos são descritas as propriedades e equilíbrio dos corpos, o movimento dos gases, a pressão do ar e a aeronáutica, a condutividade dos metais, a luz e as ilusões ópticas, a química, a eletricidade e o magnetismo, a matemática dos truques de dados, a ciência natural e os brinquedos mecânicos. Houdin devora o livro horas a fio, mas rapidamente compreende que não pode avançar nos conteúdos só com o intelecto. Recruta as mãos para o exercício, aprende a destreza com prestidigitadores, e alia o engenho à mecânica de autómatos. Com os seus feitos tira a magia das ruas e cria um espetáculo para os ricos.

O propósito da ilusão é divertir. Não cremos no que vemos, mas ignoramos o mecanismo. Ao contrário da magia, o ilusionismo não depende da fé para enganar tolos. Tristemente, os tolos não sabem ver a diferença.

O problema reside na repartição do poder e agência entre forças, pessoas e objetos. As forças podem ser naturais ou sobrenaturais; as pessoas podem ser senhoras ou escravas; e os objetos podem ser animados ou inertes. Quando o papel de um elemento é ocultado, os outros parecem sobressair, e atribuem-lhes propriedades que não possuem. Como fazer justiça a esta participação mística perante o desencantamento do mundo? A modernidade esforçou-se por eliminar a influência e o contágio, criando objetos sem sentido. Urge aceitar que afetamos, e que somos afetados. Acreditar que os objetos nos guardam e que eles próprios geram vida. Talvez este seja o passe de mágica.


Colaborar

Recordo os dias de bancada, ao lado das minhas colegas, com toda a parafernália. O bico de Bunsen, que era, na verdade, um Butagaz comprado numa drogaria, adquiria no laboratório um novo estatuto. Lembro-me da autoclave, essa panela de pressão sofisticada, e de todos os tubinhos minúsculos cobertos com algodão. Escrevia neles com as canetas permanentes que fazem agora as delícias da minha filha nos desenhos. Os objetos são tratados de forma vulgar ou com reverência dependendo de onde estão, sem fazerem nada diferente. Um Butagaz ora esteriliza a agulha, ora aquece a panela, com ou sem a colaboração de mais peças.

Colaborar. Co-laborar. Trabalhar lado a lado. O laboratório é um lugar onde se trabalha. Mas sem o prefixo co torna-se um lugar solitário, ou pelo menos, um onde a solidão da cientista é conseguida pela invisibilização das restantes entidades que coexistem no espaço. Dizia-me um colega que o seu doutoramento foi em lavar louça, tendo em conta os requisitos exigentes de retirar do vidro os odores que procurava medir. Lavar a louça torna-se assim um trabalho especializado, impossível de ser relegado para a senhora que esvazia os baldes, ou para a outra que desliga as arcas frigoríficas para ligar os aparelhos de limpeza. Já os suportes dos vidros são feitos por um artesão bem pago, pois são peças únicas feitas à medida dos clientes mais difíceis de contentar. Estas lembranças emanam agora das superfícies vazias como fantasmas incapazes de abandonar o lugar onde trabalharam. Que fazer das placas de Petri que conservo no meu armário? Já não servem para a cultura de fungos vivos. Algumas guardam parafusos, ou vão comigo para as escolas onde faço atividades moderadamente científicas pela sua presença. Mas até hoje, nunca tinha visto objetos rebelados. Não me tinha apercebido o quanto dependemos da sua colaboração. Que fazer dos objetos onde a mão humana já não encaixa? Será uma experiência do inferno? A PAO – partido anarquista dos objetos, comanda os seus objetivos? Podemos chamar-lhes inúteis. Mas somos-lhes claramente indiferentes. Estão a fazer coisas, mas o quê? Pensam ou já se libertaram deste fardo? Mexem-se imóveis e abrem a porta à eternidade. Pobres de nós sem eles, teremos de encontrar uma nova forma de estar sozinhos.




* escrito em diálogo com a exposição “Laboratório” de Rui Matos no Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa. Fotografias de Rui Matos.