“Dá um Osso ao cão”, Blues de Pedro Alípio ft. Rita Serra
Os três cães
Encontrei três cães, dois Sufis e um europeu. Um dos Sufis era velho e abandonado, estava quase a morrer de fome e agarrou-se a um Osso que roeu até não haver mais nada para consumir. Um homem deu-lhe comida, mas o cão estava tão consumido pelo Osso que se recusou a largá-lo, e morreu de fome.1 O outro Sufi feria-se a comer o Osso, e o que comia era o próprio sangue.2 O europeu tinha um comportamento inato que o levava a ser atraído pelo objeto de interesse sem o conseguir largar.3
Alice na rua 6
Alice Goffman, filha dos imigrantes canadianos Erving Goffman e Gillian Sankoff, ficou tão obcecada pela injustiça social do encarceramento em massa de crianças negras nos EUA4 que se dedicou a fazer uma etnografia de jovens negros num bairro de Filadélfia durante mais de seis anos.5 Publicou um livro aclamado pelos sociólogos até lançarem a dúvida se realmente ela teria feito o trabalho. Era-lhes difícil acreditar que a malta do bairro tivesse aberto a porta e a vida àquela branquela. Elijah Anderson usou o trabalho do pai de Alice em Stigma para ilustrar o estigma de cortesia sofrido pela filha: quem anda com os estigmatizados sem o ser e carrega um fardo que não é dele, deixa as pessoas normais tão desconfortáveis como as estigmatizadas, porque confronta toda a gente com demasiada moralidade ao tratar o assunto de uma forma neutra.6 Quando Alice não conseguiu o contrato permanente na universidade, desapareceu da academia. Pensa-se que foi viver para a Rua 6, que deixou de ser trabalho e passou a ser casa.
Chelsea Manning
Um jornalista perguntou-lhe se foi uma decisão difícil voltar para a prisão em 2019 após estar em liberdade, por não testemunhar a relação que tinha com Assange. Chelsea respondeu que não foi difícil de todo. Diz que luta todos os dias com o chamado mundo livre, comparado com a vida que tinha na prisão. No mundo livre não sabe o que o amanhã lhe traz, está menos apoiada que nos militares e na prisão porque lá tinha cuidados de saúde e comida, e havia mais comunidade.7
Adoção forçada
Entre a década de 50, 60 e 70, mais de 215 mil mulheres na Inglaterra foram forçadas a entregar as suas crianças para adoção.8 Hoje, com 70 e 80 anos, estas mulheres contam as suas histórias9 e exigem um pedido de desculpas por parte do governo do Reino Unido, conforme requerido pela Comissão dos Direitos Humanos em 2022. Muitas conseguiram reencontrar-se com os seus filhos já adultos. Quando os encontram, sentem emoções complexas, pois o encontro com o filho adulto acorda a memória do filho que lhes roubaram.
É difícil saber quando se entra no Osso e já não há tutano. É difícil saber quando a carne que comemos já é a nossa. É difícil largar a fome para comer o prato, porque a comida não nos é nada e a fome tornou-se um hábito.
É difícil largar o que amamos e há que fazer escolhas trágicas: viver a vida, ou ganhar a vida a falar dela.
É difícil trocar a segurança pela liberdade, quando a prisão dá mais segurança.
É difícil chorar um bebé quando se encontra um adulto e a dor que já devia ter passado em vez de ser eutanasiada, acorda.
O conquistador
Reclamo que cantem o Conquistador dos Da Vinci na escola. Respondem-me que a história de Portugal não pode ser apagada. Penso nos oceanos de amor e nos dois jovens que apanharam nas trombas dum manifestante contra a imigração em Lisboa.10 Terá sido uma das 894 pessoas que sente orgulho em ser colonizado por pessoas que sabiam para onde iam?11
Os cegos
Um autista e um cego discutem porque o autista não consegue ver os outros e o cego está a explicar-lhe isso. Aparentemente o autista não consegue largar o Osso e tem de ter sempre razão.
A guerra
Falo com o meu marido sobre a Kamala e a necessidade consensual de assassinar Trump. Diz-me que é melhor a submissão do que a perda estúpida de vidas. Concordo e estudo países para emigrar, mas os mais seguros têm vulcões e podem ser alvo de um inverno nuclear.
Em 1573, Filipe II ordenou por decreto real que se usasse a palavra “descobrimentos” em vez de “conquista.” O termo conquista era defendido por Bartolomeu de las Casas, por explicitar a violência do encontro colonial. “Não queremos que o uso do nome seja incentivo para que se possa usar força e causar injúria aos índios”, disse o rei de Espanha.12
Numa palestra sobre autismo, comparam as pessoas autistas às albinas: diagnosticam-lhes os cancros de pele, mas não a pele despigmentada que as torna mais vulnerável à exposição solar.
Os EUA declaram estar em pré-guerra e dizem que um trilião de dólares não chega para a defesa, porque precisam de aumentar o número de armas nucleares e Biden começa finalmente a perceber isso.13
Uma vizinha disse-me que o marido apegou-se demais à doença e foi por isso que definhou e morreu. Não sei se comeu o próprio sangue.
A Alice destruiu os arquivos que a podiam salvar da morte académica para que a bófia não os apanhasse primeiro.
Chelsea Manning trabalha para uma empresa de segurança, mas sente-se insegura.
Outra vizinha troca fotografias de família com o filho no WhatsApp porque não consegue falar com ele, ainda não o matou em bebé.
Encontro uma argentina na escola tão perplexa como eu com os oceanos de amor e quem sabe, ganho uma amiga.
Revejo-me no cérebro de outra pessoa que lhe sai da boca por palavras e vejo pedaços da minha vida que digiro.
Assusto-me com os homens antifeministas de 20 anos da Coreia do Sul que são piores do que os seus pais.14
Aprendo que os albinos sofrem em proporção à diferença da sua pele dos demais. Em alguns países são caçados como animais.15
Teço finalmente a minha teoria. Sou um micélio. Sozinha sou uma teia nervosa descarnada exposta aos elementos, sei porque me devolveram a imagem e vi-me. Não tenho princípio nem fim e ligo-me a tudo. Encarno-me com a minha carne, mas não me chega e vou além dela. Ligo-me com a minha mãe, o meu pai, as minhas avós e avôs, ligo-me com o meu tio, as minhas gatas, o meu marido, a minha filha, as minhas amigas e os meus amigos, as minhas vizinhas, os livros que leio, os textos que escrevo, as notícias que não vejo e as coisas que me acontecem, faço cogumelos quando exposta à chuva e ao sol protegida pela terra que me envolve os nervos, toco as extremidades de outros micélios e produzo mais cogumelos, capturo nemátodes e outras criaturas terrestres, sou cultivada por formigas, faço simbioses com alguns seres e recuso abominavelmente outros com medo de me tornar neles e morrer, fecho os olhos covardemente perante os cabelos da Medusa e sou corajosa de forma néscia enquanto estou cega, amo inevitavelmente o mundo porque não tenho outra opção e rio-me para estilhaçar a dor e ansiedade que sinto. Enrolo-me em pensamentos e não os largo até os abandonar sem dar conta porque me aparecem novos a que não consigo resistir. Sou parvalhona e inteligente ao mesmo tempo, e juro que anseio pelo desprezo do leitor que me confere anonimato. Se algum dia me confrontarem com o que escrevi, nego tudo. É impossível ser-se sério neste mundo, mais vale só viver.
E como disse William Blake nos Provérbios do Inferno, também eu digo basta, Rita! Ou é demais!
1 https://l1or.wordpress.com/2010/09/05/anecdote-the-dog-and-his-bone/
2 https://yoursparks.wordpress.com/2006/06/06/true-lasting-happiness-a-sufi-parable/
3 https://dictionary.langeek.co/en/word/218913?entry=like%20a%20dog%20with%20a%20bone
5 https://www.nytimes.com/2016/01/17/magazine/the-trials-of-alice-goffman.html
6
The person with a courtesy stigma can in fact make both the stigmatized and the normal uncomfortable: by always being ready to carry a burden that is not ‘‘really’’ theirs, they can confront everyone else with too much morality; by treating the stigma as a neutral matter to be looked at in a direct, offhand way, they open themselves and the stigmatized to misunderstanding by normals who may read offensiveness into this behavior. Stigma, 1963, Erving Goffman
7
“OK, I’m going to get real intense here.” Manning’s voice lowers, loudens and becomes very harsh, as if she is forcing out an unbearable truth. “I struggle every day with the world out here,” she says. There is a long pause. “I have a lot of trouble with this world, this so-called free world, compared with the life that I had in prison.” Why? “I struggle with the fact that … I don’t know what tomorrow brings out here. I feel less supported than I did in both the military and in prison. In prison I know that I have housing; I know that I have healthcare; I know that I have food. I don’t feel as secure here. And people are so detached. There is no community. People don’t talk to each other. People don’t say hi to you. People are suspicious of each other.” Her voice rises to a peak. “There’s more community in a prison than there is out here! And that says a lot about how fucked-up our world is right now. I struggle with it every day.” https://www.theguardian.com/us-news/2022/oct/22/chelsea-manning-leaked-military-documents-free-word-prison
8 https://movementforanadoptionapology.org/
9 https://www.bbc.com/news/uk-62172101
11
“Sou Brasileiro, tenho orgulho em saber que fui colônia dos marinheiros mais inteligentes do mundo nos sécs XVI e XVII. Dentre todos, somente os portuguêses sabiam, de facto, para onde estavam indo. Cristovão Colombo saiu da Europa sem saber para onde estava indo, chegou onde não sabia, ao voltar à Europa não soube dizer para onde foi. Sim, o idioma português é lindo e rico. O povo é caloroso e gentil e a comida, meu Deus, o povo para cozinhar bem. Jà fui três vezes a Portugal e não me canso de ir. Eis que eu me sinto estranhamente familiarizado com esta terra como nunca imaginei”, comentário à música “Conquistador” em https://youtu.be/dhZEU6Ofock?si=HZHdcqtu_Da_8ML_
12 https://www.publico.pt/2018/06/22/culturaipsilon/opiniao/a-patria-nao-se-discute-defendese-1834352
13 https://www.aei.org/op-eds/even-with-1-trillion-a-year-the-us-military-is-falling-behind/
14 https://www.economist.com/asia/2024/06/27/meet-the-incels-and-anti-feminists-of-asia
15 https://en.wikipedia.org/wiki/Persecution_of_people_with_albinism