Lektionen in Finsternis, de Werner Herzog, é um filme de 54 minutos gravado em 1992, no Kuwait, logo após a Guerra do Golfo. Não se trata de uma reportagem de guerra ou de um relato dos acontecimentos. Não sabemos datas, locais, nomes de líderes ou qualquer desenlace político ou militar. O que vemos é um cenário absurdo, um planeta irreconhecível, uma peça de ficção científica não fossem aquelas paisagens tão autênticas quanto as imagens que nos chegam de outros paraísos. No início, sobrevoamos uma cidade, com o seu futurismo assente em formas e feitios desafiadores, verticais e dispersos, recortados por um sol já rasteiro, anunciando a noite ao som das sirenes pré-bombardeamentos. Depois, como os primeiros pássaros, varremos o solo com o olhar, antecipando, primeiro os rastos dos pequenos seres (seriam homens como nós?), as crateras, as cicatrizes; depois os escombros das grandes estruturas, um império de extracção dizimado, uma Babilónia perdida mas sem mistério, fonte do líquido das pedras, do ouro negro e de outros nomes para a mesma matéria.
Nesse movimento alado, descemos de barriga para baixo, sem nunca tocar o chão, como se o solo queimasse — a Terra é-nos hostil. O voo lento dá-nos tempo para tentar encontrar semelhanças com o nosso mundo, mas quanto mais deslizamos sobre a mancha cada vez mais escura maior é o nosso convencimento de que nos encontramos num outro planeta ou, num ápice de ceptcismo, no nosso próprio apocalipse. Ei-lo, o apocalipse, de mãos dadas com o paradigma do consumo, o combustível, numa dança de traições, onde os deuses e os liberais se revezam na salvação de um dilúvio sem cores e sem espécies. Dilúvio que arde, belo, como um inferno. Que reflecte o céu num espelho de crude, como se fosse água, uma mentira estendida na amplitude do deserto, que já foi vida, como todas as superfícies tocadas pelo progresso se prolongam apenas em progresso, de oásis em oásis. Mas o fim apocalíptico não deve ser reduzido a um silêncio ou a uma falha da linguagem. Não tem que ser um trauma. O derradeiro fim, que existe apenas para justificar uma ausência de sentido da prevalência do mal, ou melhor, para nos aliviar da frustração de não dominarmos o nosso destino, é, também ele, uma beleza, uma construção, uma paisagem. Como uma amazónia frondosa ou um fiorde com as suas pontas brancas, também a nossa desgraça surge representada, para que a possamos admirar e, mesmo contra a nossa vontade, nos comovermos com a maravilha de um planeta a suar veneno.
A viagem prossegue, magnânima, de mãos dadas com o retrato da extinção, sugando do ar o que resta de oxigénio naquele breu de milhões de anos queimados, enquanto a respiração se torna parte da experiência do cinema, com Schubert, Mahler e, claro, Wagner, a garantirem que não passamos inocentes por tanto mal, que não nos esquecemos de respirar, a pulmão aberto, cada cinza, como notas de uma longa melodia que perpetua a sentença: The collapse of the stellar universe will occur — like creation — in grandiose splendor.1
Lektionen in Finsternis tem o poder de funcionar como ensaio, porque propõe; como documento, porque regista; como ficção, porque se entusiasma; como lente, porque amplifica; como poesia, porque fragmenta; como arqueologia, porque se debruça; como jornalismo, porque testemunha; como literatura, porque narra com energia e cuidado; como arte, porque aponta ao sensível sem medo da interpretação. É a força da linguagem num contexto que normalmente a destrói. Trata-se, realmente, de uma lição. Mas a lição, aqui, não é algo que se retira da obra, não é algo que se aprenda. Esta lição das trevas é também, por analogia, uma incursão em matéria de cegueira, do trabalho do olhar, que nos embrenha, cuidadosamente, na atmosfera opaca e viscosa de uma destruição, confrontando o instinto socorrista daqueles seres encharcados em material combustível com o inefável desejo de o ver arder.2
Seria difícil descrever o mundo sem uma certa dose de pessimismo voluntário quando é esse mal expectante que domina a apetência para o desejo. Sabe-se da propensão dos poetas para o mal quando Bataille escreveu,3 a propósito dos erros e imperfeições dos poetas (como indivíduos), que o homem não pode amar-se até ao limite se não estiver sujeito a uma condenação. Sabemos, porque confrontados com a sua aparência mais explícita, que o nosso estilo de vida, assente no saque aos recursos do planeta, no seu consumo, no abandono dos dejectos à digestão do tempo, se congrega numa nuvem maligna, composta por desperdícios e excessos, e que não nos resta senão encarar o fôlego da vida, cada inspiração e expiração, como dois movimentos da ansiedade causada pelo arrepiante sangramento do mundo.
Nada disto quer afirmar que somos todos pirómanos ou poetas em potência. Quer apenas dizer que somos todos um pedaço de maldade. E o cinema, que tanto contribuiu para ganhar guerras como para as evitar (como quando assumiu o papel de soldado na Guerra Fria), aparece, aqui, aparentemente sem roteiro, ele mesmo curioso, debruçado, surpreendido, sem medo de inventar o sensível, sem medo de “ser mal interpretado”, porque sabe que dizer é diferente de mostrar, e que o mostrar pode ser bastante mais condizente com as escorrências e os fumos no que toca a preencher os grandes eixos abertos por esses territórios inóspitos a que chamamos malícia, miséria simbólica ou, simplesmente, de poluição.
1 Citação de Blaise Pascal que abre o filme.
2 Durante grande parte do filme acompanhamos o esforço heróico, mesmo desproporcionado, dos grupos de homens, munidos de grandes máquinas e de quantidades de água desmedidas a tentar extinguir as altas línguas de fogo que se apoderam dos jorros de petróleo condenados a arder infinitamente. Já no final, quando percebemos que, apesar da dificuldade, é possível apagar tamanhos incêndios, o narrador surpreende-nos, com esse momento em que os mesmos homens acabados de extinguir o incêndio, voltam a atear fogo aos poços, lançando a questão: “Has life without fire become unbearable for them?”
3 Georges Bataille em A Literatura e o Mal.