— Bom dia, vasta audiência. (Madalena, entusiástica) Bom dia, dr. Pichón. Como sabem, alterámos o horário do nosso programa. A produção diz que o nosso auditório está de férias e que talvez seja este o horário mais adequado.
— Bom dia. Antes de começar, e para os que não a estão a ver, gostava de dizer que a Madalena é a imagem radiosa do verão. (Madalena tenta tomar a palavra, sem êxito. Pichón parece desistir, faz um gesto significando “Que não vai escrever sobre o tema”) — Não agradeça, Madalena. Vou direito ao assunto. O meu auditório, como diz, não tem férias.
— Como assim?
— As férias, a interrupção do ciclo normal de trabalho, não é?…
— Julgo que sim… (Madalena parece surpreendida)
— … devem ter surgido recentemente. Com o capitalismo. Os agricultores não tinham férias.
— Nem têm! (Madalena, lembrando-se dos avós)
— Os escravos não tinham férias. Os servos da gleba também não. As férias devem ter surgido como uma regalia para os trabalhadores assalariados.
— Uma conquista proletária.
— Ou um mecanismo que assegure a conservação e a melhor rentabilidade da força de trabalho. Depende do ponto de vista.
— E qual é o seu ponto de vista?
— O meu ponto de vista, como lhe chama…
— O dr. Pichón é que usou esse termo. O dr. Pichón é que parece pensar que tudo depende do ponto de vista. (riso) Há tempos li um livro de um autor… cujo nome agora não recordo…
— Faça um esforço, Madalena. A produção, como lhe chama, anda obcecada com a questão da autoria.
— Dr. Pichón, está incrível, hoje. Eu é que me devia importar com a produção, com o que preocupa a produção, com a questão da autoria (Madalena sublinha a expressão “a questão da autoria”, de tal forma que ficamos a saber que se trata de uma questão epistemológica fundamental, como “a questão da audiência”, ou “a questão das férias”. Ou devíamos dizer Autoria, Audiência, Férias?) — E assim não vale. O dr. Pichón está permanentemente a mudar de… personalidade. Parece um filósofo vira-casacas. Assim não se pode discutir.
— Um eclético? (O tom do dr. Pichón é irónico)
— Um relativista. Lembro-me agora. É num livro de Richard Dawkins. Ele está a falar de factos que explica à luz da teoria da evolução. E surpreendentemente, porque parece estar a fornecer argumentos que mostram que a vida, e as suas variadas expressões, são fruto do acaso e por isso se equivalem, no seu valor, na sua ausência de sentido, subitamente, estava eu a dizer, lança uma diatribe contra os relativistas. Diz algo como” mostrem-me um relativista e eu mostrar-vos-ei um farsante”.
— Um farsante! (o dr. Pichón parece concordar) — Uma pessoa em férias é um farsante. Alguém que pretende que a sua vida podia ser outra. Que existe um tempo diferente do tempo do trabalho e da produção. Da vidinha funcionária.
— E existe? (Madalena, forçando uma confissão)
— Para os aristocratas existe, decerto. Os aristocratas não têm férias.
— Ah, compreendo. O seu auditório é composto por aristocratas.
— O meu auditório… não estou seguro. Mas os meus amigos, sim, tenho a certeza.
— De que não vão para férias?
— De que são aristocratas à sua maneira.
— E o que fazem, esses aristocratas? De que vivem? Onde moram?
— Olhe Madalena, ontem fui fazer um pagamento a uma Caixa Automática que estava numa antecâmara do Banco Santander, uma filial perto de minha casa.
— É o seu Banco?
— Eu não tenho Banco, Madalena. Digamos que é o Banco que me tem.
— E então…?
— Então sucedeu que estava uma senhora a fazer limpezas mesmo junto à caixa que eu pretendia usar. Usava um balde e uma esfregona. Eu perguntei se podia fazer uma operação. Ela afastou-se ligeiramente. Pedi desculpa por estar a utilizar aquele espaço. Disse: — Desculpe, estou a interferir no seu trabalho. Temos pouco espaço.
— Estou a ver… (Madalena aguarda uma revelação)
— E ela: — Ainda havemos de precisar de menos espaço. E será suficiente.
— Quer dizer que os aristocratas seus amigos limpam os Bancos intercontinentais e fazem citações sobre a morte, enquanto usam o balde e espremem a esfregona?
— Quero dizer que precisam de pouco espaço. De pouco dinheiro. De pouca mobília.
— De muitos livros. (Madalena, interrompendo)
— Um deles, o responsável por este programa, por exemplo, não tem profissão. Foi engenheiro naval, como o Álvaro de Campos. E depois disso, ou durante isso, tornou-se curador.
— Eu sei. Organiza exposições, eventos efémeros. Entretenimentos e sucedâneos, diz ele.
— Claro que sabe. A Madalena conheceu Bioy Casares, as irmãs Ocampo?
— Adolfo Bioy Casares, o amigo de Borges e marido de Silvina Ocampo, morreu em 1999. Podia tê-lo conhecido. Mas não foi o caso.
— Sabe quem foram. Era aí que eu queria chegar. Conhece a sua obra. Pois a de Bioy Casares é monumental. Só a correspondência com Borges, editada em 2006, tem 1700 páginas. Silvina Ocampo foi agora editada aqui, no seu país. Dois livros notabilíssimos. Adolfo, as irmãs Ocampo, Pizarnik, ela mesma, nunca tiveram emprego. Ou aquilo a que chamam, comummente, trabalho.
— Certo. Já percebo. Podemos contar com o seu amigo e meu diretor. Deve estar a ouvir-nos e não irá para férias, essa invenção burguesa. Tem mais ouvintes?
— M. Silveira, um amigo que escreve na Ossos. Está registado como “atuando no sector de import-export”. Mas deve ser uma piada, ou um disfarce. Julgo saber que é um crítico radical da fetichização da mercadoria, da transformação das relações sociais em relações reguladas pelo mercado. Diria que este meu amigo desconhece o conceito de férias.
— Rita Serra?
— Rita Serra é uma reputada botanista…
— Botânica.
— … uma reputada botânica que aprendeu a conhecer o valor alimentar dos eucariotas, a reconhecê-los, colhê-los e cozinhá-los. Não descarto a possibilidade de estar a aceder a um estado parcialmente autotrófico. Não precisa de dinheiro, é uma mulher do mundo, mas o mundo dela é anterior às classes sociais e à divisão social do trabalho.
— Andreia?
— Só a conheço através das entrevistas.
— Eu já me cruzei com ela.
— Oh, a sério!? Tem profissão? Como é ela?
— É uma mulher que trabalha.
— Não nos ouve, então?
— Não é certo que nos ouça. (pausa desolada) — Para quem falamos, doutor?
— Para os meus amigos e para os seus amigos, Madalena. Ostraliana faz coros numa banda rock, Frederico Martinho é voluntário em Nea Kavala, Francisco Feio é fotógrafo e investigador da história da fotografia…
— Mas os seus amigos, esses…existem mesmo? Não serão apenas personagens ficcionais?
— Álvaro de Campos, existiu? Ricardo Reis morreu em 1936 ou em 1984, quando Saramago escreveu o livro?
— Morreu em 2020, às mãos de João Botelho. (Madalena faz uma pausa como se tomasse fôlego) —Terry Eagleton diz que “não podemos ter dó, admirar, temer ou abominar uma personagem ficcional, mas apenas experienciar ficcionalmente essas emoções”.
— Isso é tão falso, Madalena. Sei muito bem o que sinto ao ler Madame Bovary ou Ana Karenina. As emoções são elas próprias, existem em nós, no nosso corpo, quer tenham sido provocadas por acontecimentos reais ou ficcionais. Não há emoções ficcionais, que tolice. Ou então a nossa vida é da ordem da ficção. Vivemos a nossa vida como personagens ficcionais. (O dr Pichón faz uma longa pausa. E termina com uma voz estranha) — E eu existo, Madalena? A Madalena porventura existe?
— Eu existo, sim, dr. Pichón. Existo e vou para a praia. Para férias.