Número 18

22 de Janeiro de 2022

EXCURSÕES

Memórias da clandestinidade

PAULO VENTURA ARAÚJO
Serra da Boneca (Penafiel) em Abril de 2020

Foi em Março de 2020 que tudo começou a mudar. Num sábado ainda fomos ao Marão ver o martaguinho (Erythronium dens-canis) – é uma flor que só dura duas semanas, aparecendo sempre na segunda quinzena de Março –, mas no regresso um polícia ordenou-nos que parássemos e perguntou-nos onde tínhamos ido. Dissemos-lhe a verdade, pois passear não era ainda ilegal. O agente apenas abanou a cabeça, contristado, e mandou-nos seguir. Ora aí está alguém com umas luzes de psicologia, pensámos: já não se fazem polícias como antigamente. No fim-de-semana seguinte, teria início o Primeiro Grande Confinamento e quaisquer “deslocações não essenciais” ficariam proibidas. De facto, quase nada do que nos preenche a vida é essencial: tirando comer, beber, dormir, respirar e outras funções vitais, de tudo o resto podemos prescindir mais ou menos indefinidamente. Decerto não era essencial passear pelos montes para ver os narcisos e botões-de-ouro do início da Primavera. Ainda assim, calculámos que, evitando auto-estradas e outras vias de muito trânsito, conseguiríamos, mesmo ao fim-de-semana, romper o cerco e sair da cidade. Enganámo-nos: não fomos além do segundo cruzamento antes de sermos travados e mandados para trás. Resignámo-nos aos passeios a pé pela cidade. Apesar de o articulado do estado de emergência consentir apenas “deslocações de curta duração para efeitos de atividade física”, os nossos passeios duravam horas. Descíamos das Fontainhas até ao Douro pela calçada das Carquejeiras, e arrepiávamo-nos imaginando a vida daquelas mulheres que, 60 ou 70 anos atrás, faziam diariamente o percurso inverso com uma carga de trinta quilos às costas. Caminhávamos pela marginal até à Foz e no regresso metíamo-nos por vielas e becos como turistas ávidos de experimentar a face mais típica da cidade. Sabe que é possível ouvir uma ribeira não entubada a correr no centro do Porto? Basta descer a rua dos Moinhos, uma paralela à rua de Dom Pedro V praticamente inalterada desde os tempos em que a cidade era um agregado de aldeias.

Tem graça como até essa altura nós, portugueses, nos julgávamos cidadãos da Europa – os mais ricos ou aventureiros até se diriam cidadãos do mundo. As fronteiras eram uma abstracção que cruzávamos sem pensar duas vezes. Na verdade, porque somos pobres, eram muitos mais os europeus que entravam em Portugal do que os portugueses que saíam para a Europa, mas em princípio nada impedia um pé-descalço luso de ir a Atenas ou a Copenhaga, nem que fosse à boleia. De um dia para o outro, a nossa cidadania minguou drasticamente: nem cidadãos do nosso país éramos, mas apenas do nosso concelho de residência. Gaienses e portuenses passaram a encontrar-se só aos dias úteis e em horário laboral, e só se não estivessem em tele-trabalho. Ao fim-de-semana, polícias de plantão em cada lado da ponte garantiam a inviolabilidade da fronteira interconcelhia. Havia, apesar disso, algo que era mais humano e reconfortante do que os tempos que vieram depois: as pessoas com que nos cruzávamos na rua (sim, eram poucas) ou que nos atendiam em padarias ou supermercados (as lojas autorizadas a abrir) tinham nariz, boca e, às vezes, um sorriso; não eram esses autómatos sem rosto em que se transformariam meses mais tarde.

Só que a cidade não nos bastava. A natureza tem um ciclo que somos compelidos a acompanhar – sem isso, a vida reduz-se a uma contagem decrescente e passa apenas a ser duração. A solução foi transferirmos para as quartas-feiras os passeios que antes dávamos aos sábados. Circular de carro em dia normal de trabalho, juntando-nos àqueles que tinham de o fazer para “manter o país a funcionar”, não atraía a atenção das autoridades. Ultrapassada a rotunda do Freixo, e com os corações ainda aos pulos, seguíamos pela marginal do Douro até Penafiel. Só parávamos na serra da Boneca, no acesso ao parque eólico, estacionando em local não visível da estrada. Pergunta-me se a serra da Boneca tem esse nome por lá haver uma fábrica de brinquedos? Engraçadinho… Não, não há lá nenhuma fábrica. Há um aterro sanitário, e por culpa dele as águas do rio Mau nada têm de cristalinas. E há muitos eucaliptos pela encosta acima. No entanto, garanto-lhe que não conheço, no Porto e arredores, ou mesmo no país inteiro, jardim que se compare ao cume da serra da Boneca no início da Abril (nessa altura, aliás, os jardins públicos estavam fechados como “medida de contenção” da pandemia). O xisto, estratificado em negras lâminas oblíquas, enfeita-se de verde, amarelo, branco, rosa, lilás e azul; contribuem para a paleta carquejas, sargaços, urzes e um sem-número de herbáceas: narcisos, erva-das-sete-sangrias, esporas-bravas, margaridas, resedas…

Horas depois, providos com a nossa ração semanal de cor e liberdade, o sol declinava e era tempo de voltar para casa. Apertava-nos o nervosismo da clandestinidade: seria dessa vez que a polícia nos faria uma espera na rotunda do Freixo?