Número 24

30 de Julho de 2022

O LADO INCERTO

MICRO ONDAS (III)

ANA PAULA INÁCIO



Peneira as palavras para encontrar o fio de que é novelo e não encontra um mas vários, em camadas, substâncias e cores diversas e deles faz tricô e de tricô se veste.

São novelos de que só ela sabe e quem a visse, porque o vestuário é toda uma linguagem, talvez ouvisse a fala da mudez.

Mas ninguém a vê.

Plantou-se a si mesma, bétula trabalhada como matéria d’espera, num alpendre de uma gramática [pode ler-se américa] aberta, que Sam Shepard poderia descrever.

Espera por uma vinda que se faça anunciar de véspera, levantando uma leve poeira azul que também possa ser névoa ou um conjunto de borboletas que chegue de noite para lhe pousar sobre o mamilo esquerdo, feito orografia, e sobre o sexo caligrafia.

Uma chegada anunciada dando-lhe tempo para se tornar Sul e França, campo e lavanda, o ofício de lavrar o coração.

Entretanto vai contando as laranjas desprendidas que rolam pelo telhado de zinco como órgãos desentendidos e lhe caem aos pés, descalços. Esmaga-os crendo-os seus.


Ilustração de Diogo Bessa