Número 17

8 de Janeiro de 2022

CAIXA ALTA

Miguel Gouveia: A leitura é um ato de resistência

Andreia M. Silva

Um dia cansou-se. Cansou-se da loucura, da pressa, da rotina da vida de professor, de fazer as malas todos os domingos à noite. Miguel Gouveia era professor de Inglês num colégio privado em Carcavelos. Cláudia Lopes, a mulher, era designer em Coimbra. Não iriam prolongar a distância por mais tempo, nem o sonho de criar um projeto comum. Nascia assim, em 2008, a Bruaá Editora, com a missão de divulgar escritores de literatura infantil nunca publicados em Portugal, promovendo autores e ilustradores de qualidade. Contudo, ali os livros não se distinguem por idade. São para todos, saibam ler ou não. Sejam miúdos ou graúdos.
Hoje, a Bruaá tem livraria no Centro de Artes e Espetáculos da Figueira da Foz e uma “irmã mais nova” no Convento São Francisco, em Coimbra. É um mundo maravilhoso cheio de histórias dentro, entre livros, pop-ups, jogos didáticos, brinquedos ou ilustrações.
Miguel Gouveia nasceu em Santo Tirso e, já depois de ter criado a Bruaá, terminou em 2010, o mestrado em “Livros e Literatura Infantojuvenil”, pela Universidade Autónoma de Barcelona.
Hoje dedica-se por inteiro à edição, tradução, música e narração oral. Tem contado em bibliotecas, escolas, associações e festivais, com um repertório construído a partir da tradição oral, mundo a que está cada vez mais rendido. Porque a narração, tal como a leitura, é um ato de resistência. E de rebeldia.

A Bruaá surgiu em 2008, na altura da crise.
Sim, a Cláudia era – e é – designer gráfica, e eu era professor. A Cláudia é da Figueira, eu sou de Santo Tirso. Conhecemo-nos em Portalegre, onde estudámos.

— Um dia decidiram deixar tudo.
Sendo eu professor, e dando aulas em Lisboa, fazia a mala todos os domingos à noite. Há muitos anos que fazia isso. Então, começámos a pensar em criar qualquer coisa nossa, em que pudéssemos reunir os dois saberes. Enquanto fui professor, dei-me conta da falta de variedade na oferta. Dava aulas num colégio inglês, em Carcavelos, onde tinha acesso a outro tipo de livros e questionava-me porque é que não chegavam cá. Foi na altura em que o mercado era ainda muito dominado por José Jorge Letria, Luísa Ducla Soares, por um grupo de escritores que sempre escreveu muito, que sempre publicou muito, mas não havia uma oferta que eu considerasse de qualidade e variada. E apercebemo-nos que podíamos tentar fazer esta editora.

— A preocupação era, então, a de editar livros dirigidos ao público mais jovem?
Sim, porque na altura não havia a variedade que existe hoje. Entretanto, aconteceu uma explosão, um “boom” na oferta e neste momento já estamos bem servidos. A partir de 2008 começaram a aparecer outras editoras (como a Orfeu Negro, a Pato Lógico), que já servem bem o público.

O que é que distingue esta editora de outras?
O nosso público é infantojuvenil, apesar de considerarmos que alguns livros não têm idade. É o caso do livro ilustrado ou do álbum ilustrado. Há muitos adultos que acabam por comprar para si e isso demonstra que o livro chegou a um certo nível de sofisticação. Aliás, penso que é isso o que todas as editoras querem: que o livro não seja definido pela idade, que não haja a preocupação de um livro se destinar a uma criança de 5 anos, 6 anos ou 10 anos. Mas o que acontece é que as pessoas continuam a procurar muito pelo tema e pela idade. É uma questão de educação do público, que ainda vai demorar uns bons anos até perceber o que é um bom livro.

— Diz que a Bruaá é um trabalho de amor. É um amor correspondido?
Quem está nesta área da edição tem de gostar do que faz porque não é possível aguentar as pedras no caminho sem se gostar muito. Daí a questão do amor. Porque não é um trabalho fácil. Começar uma editora é fácil, mas manter uma casa deste género, com uma rotação mínima, como nós fazemos – de três livros por ano –, é muito difícil num país pequeno como o nosso. A juntar a isto, há cada vez mais oferta e a procura mantém-se. Os últimos dados que saíram mostram que os portugueses basicamente não leem, apesar de continuar a haver uma espécie de proteção, uma carapaça de segurança: os adultos podem não ler, mas continuam a reconhecer o valor da leitura e a oferecer livros às crianças. Há muita oferta neste momento e manter uma editora com três a quatro livros por ano, no meio de toda esta oferta, é também muito difícil. Portanto, há muita gente que consegue abrir a sua editora, mas mantém o seu emprego. Há muita gente da área da poesia que faz isso. No nosso caso, é possível sobreviver da edição, mas também temos de fazer outras coisas. As livrarias ajudam a manter a editora.

As livrarias são um balão de oxigénio?
Sim. E o facto de nós vendermos direitos para outras línguas também ajuda imenso. Não é segredo para ninguém. O facto de nós fazermos originais e depois vendermos esses livros para outras línguas é um balão de oxigénio que é vital. Portugal é um país muito pequenino, sem grande escala para vender e, portanto, ou se publica muito, ou se está constantemente a publicar novidades. Se publicamos três livros, temos que fazer outras coisas para tentar equilibrar as contas ao final do mês.

— Na Bruaá há muito mais do que livros…
Sim, cada vez mais. Nas lojas, temos todo o tipo de pessoas: as que vão ao centro cultural onde as livrarias estão inseridas [no Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, e no Convento São Francisco, em Coimbra] e que só depois vão à livraria. Também há pessoas que vão diretamente à livraria, mas o primeiro público é um público que nos chega completamente ao acaso e daí termos outros objetos além de livros. Pode entrar ali uma pessoa mais velha que vai à procura de outra coisa, de um saco ou uma peça de cerâmica e acaba por levar um livro para o neto. A nossa tentativa é essa: tentar ter um bocadinho de tudo – não tudo, evidentemente –, mas que tenha uma razão de ser e que possa fazer uma ponte com um livro. É essa tentativa, perante a crise de leitura que existe. Cada vez mais as pessoas entregam-se ao ecrã, embora culpabilizem as crianças. A verdade é que o exemplo vem de algum lado. São crianças, são adultos, é toda a gente que está completamente rendida ao ecrã e é esta tristeza a que se assiste. Neste momento, temos pessoas que passam pela livraria e nem sequer entram. E mais doloroso ainda: pessoas com crianças pela mão que não entram na livraria, sequer.

Entretanto, agora dedica-se à edição, mas também à narração oral em bibliotecas.
Sim. As pessoas acabam por me convidar. Bibliotecas, escolas, festivais…

— Conta histórias?
Sim, a narração é, basicamente, a narração sem livro – ou seja, contra mim trabalho –, mas é algo que me está a fascinar há bastante tempo. Digamos que saí do armário e assumi-me como tal. A minha ideia é, aos poucos e sem deixar completamente edição, dedicar-me à narração oral de forma cada vez mais preponderante e poder viver disso. Não é um sonho, daqueles sonhos aguerridos, mas gostava muito.

— Porque gosta tanto?
Acima de tudo, é a descoberta. Continuo a ter de fazer esta prospeção de textos, de estudo de histórias e depois, tanto com os miúdos como com os adultos, é a relação que se estabelece naquele momento entre quem conta e quem ouve. Estabelece-se uma relação algo indefinível em que, tanto quem conta como quem ouve, aparece para dar lugar ao conto. Estabelece-se uma ligação que não surge com o livro. A narração é como a leitura: é um ato de resistência à pressa e à loucura em que vivemos. E não deixa de ser um ato de rebeldia. Portanto, parar para ouvir e parar para ler são, neste momento, atos de rebeldia e pouca gente está a ser capaz de ser rebelde, porque somos todos completamente vítimas destas parvoíces do Facebook e Instagram, a ver todos a mesma coisa, todos a fazer o mesmo gesto. A leitura e a narração oral podem, de facto, ser um contraponto a esta vida que vivemos. O problema é que, normalmente, quando se fala em contar histórias, os adultos acabam por relacionar isso com a infância. De certa maneira têm razão porque aqueles que tiveram experiência de ouvir histórias na infância acabam por reviver isso. Mas os adultos precisam muito, muito de ouvir e de contar histórias. Todos nós somos contadores, ao fim e ao cabo. Mas contamos e ouvimos cada vez menos. Ninguém está a ouvir. Está tudo preocupado em contar a sua história e pouco interessado em ouvir a do outro.




Espaço Bruaá / Livraria do Convento, Coimbra


Espaço Bruaá / Centro de Artes e Espectáculos, Figueira da Foz