Número 16

11 de Dezembro de 2021

CORPO, BELEZA E SAÚDE

Morticia

ARACNE

Para o Doutor Enigma

Life is not all lovely thorns and singing vultures, you know.
Morticia Addams


Os espinhos são abençoados.
Focam o mal-estar numa dor localizada.
O problema são as outras dores.
As que são ondas em vez de partículas.
As que me arrastam pela areia até ao mar.
Nenhum grão, nem todos em conjunto, me seguram.
Sustenho a respiração e espero que passe.
E passa.
Mais tarde ou mais cedo, sou cuspida, indigerida.
Uma massa indistinta que o gato trouxe.
Mordida, mastigada, desfigurada.
Não faz mal. Consigo-me figurar outra vez.
Mas em quê?
A carne, mesmo viva, esquece-se de quem é.
Mudo de forma até adivinhar a que me serve.
Sem memória do que fui antes, só me resta a liberdade do presente.
Só me resta sangrar em letras e recompor-me.
Posso decidir, ou não, ser outra coisa qualquer.
Há tantas coisas que ainda não fui.
O mais difícil é aceitar a cegueira.
Evitar o belisco do x-ato e aceitar que sou onda e sou partícula.
E deixar-me ir, sem fio nem medo, rebolar no mar.

Morticia ao fundo do túnel, por Cândida Eréndira