Número 24

30 de Julho de 2022

MERCADO DE FUTUROS

Mundo

HÉLIO BARATA

Sempre lutei por aquilo que quis. A minha responsabilidade pelo que tenho é total, não sou só, como tantos, mais um tronco levado pela torrente causada por um evento de pluviosidade extrema. O que lhe poderíamos pedir? Que se tivesse segurado nas rochas ou que tivesse orientado o seu rumo para as margens? Comigo não foi assim: não me limitei a aproveitar as oportunidades que me caíram no regaço de acordo com os conselhos explícitos e implícitos que a sociedade me foi dando, eu próprio as criei. E não me posso queixar. Aufiro um ordenado superior à média dos meus congéneres dos países da OCDE, vivo numa bela casa com vistas de campo, conduzo um carro da empresa que transmite a ideia de que tenho posses ligeiramente acima das reais, a minha família nuclear é um modelo de estética e sucesso escolar. As fotografias das minhas viagens, quer de férias, quer de trabalho, têm mais visualizações e partilhas que os giveaways de pantufinhas com borboletinhas para bebés de mães consumistas. Não é que não tenha problemas, os meus maus momentos, que o meu quotidiano não esteja pejado de problemas laborais e familiares, de maleitas e desgostos, como o de qualquer pessoa que não viva num delírio zen, mas tenho consciência de que seria uma impudicícia queixar-me publicamente das pedras no meu caminho.

Esta paz foi, há uns meses, perturbada por uma consciência que até então me tinha escapado. Instado por um jovem colega do meu mais novo, acedi a um sítio eletrónico o qual, após responder a duas mancheias de perguntas de cacaracá, me informou de que, caso todos os habitantes do planeta vivessem como eu, seria necessária uma mole de Terras para os sustentar. O planeta, acrescentava, está a morrer às nossas mãos, os ecossistemas a atingir o limite da sua capacidade de suporte. Se nada for feito, as futuras gerações terão de pagar um preço elevado pelos nossos atos e a única forma de evitar a tragédia passa por cada um de nós assumir as suas responsabilidades e mudar os seus comportamentos individuais. Primeiro estranhei, depois entranhou-se-me. Não que nunca tivesse ouvido falar do problema, como é evidente: os meus poderosos dispositivos móveis e imóveis permitem-me acompanhar a atualidade ao segundo, assim o queira, e o tema das alterações climáticas e destruição de habitats já bastas vezes me tinha passado pelos olhos. Mas a visualização da quantidade de planetas que são precisos para me sustentar teve um impacto que não poderia antever. Decidi então que, se é minha a responsabilidade de salvar o planeta, esse era um desafio que não poderia recusar.

O primeiro passo, que foi mais difícil do que eu pensara, consistiu em descobrir uma atividade benéfica para o planeta que estivesse ao meu alcance. O melhor a fazer, segundo várias das minhas pesquisas, seria deixar de andar de avião. Impossível. O meu emprego implica umas boas milhas por ano e prejudicar a minha carreira profissional não é algo que eu esteja disposto a fazer. Além do mais, as férias fora são um bem de primeira necessidade, não vou morrer estúpido nesta modorra. Passar a usar transportes públicos era outra das indicadas, mas trata-se de uma sugestão feita por e para pessoas com outro tipo de responsabilidades, que não têm problemas em privar com os cheiros da humanidade e sujeitar-se a horários impostos sem participação. Deixar de comer carne já seria mais exequível, não fossem os jantares profissionais em que essas picuinhices não são bem vistas. Diminuir o tempo dos banhos para poupar água é outra que tal: as pessoas que inventam estes conselhos não têm noção do contributo que passar meia hora debaixo do chuveiro tem para o bem-estar psicológico de alguém com uma vida ativa. Plantar uma árvore, que aparentemente captura carbono, seria uma boa ideia, mas não para quem vive num apartamento.

A solução surgiu quando menos esperava, quando por acidente vi um programa sobre a forma como a fauna marinha sofre com polímeros sintéticos. Ali estava a forma de passar à ação e fazer a diferença: aqueles passeios de fim de semana à praia mais próxima, a cerca de cinquenta quilómetros de distância, poderiam facilmente ser rentabilizados a favor da proteção do ambiente. Em vez de passarmos o tempo todo na esplanada a comer camarões, podíamos perfeitamente subtrair dois ou três minutos a esse tempo para apanhar umas garrafas e outras porcarias que por lá andam, fotografar, publicar nas redes sociais e voltar para casa com a alma cheia.

Foi assim que me tornei ativista ambiental, a par de todas as outras vertentes da minha multifacetada vida. A par das minhas atividades de Limpeza das Praias, também aproveito algum do tempo junto dos meus pares para me dedicar à sensibilização, nomeadamente através da criação de um clima de censura social em torno das pessoas que, contrariamente a mim, não apanham tampas de esferográfica dos areais deste mundo. Que não aproveitam a semana de férias nas Maldivas para recolher uma mola da roupa descolorada que seja. Julgo que não será um excesso afirmar que já contribuí alguma coisa para mudar as consciências. Julgo que não será empáfia dizer que, graças à minha vontade, o planeta está a ficar um pouco melhor.