23 de Agosto de 2022
A noite avizinha-se e um deslumbrante crepúsculo alaranjado acompanha a última dormida em abrigo. O ar está agora bastante mais fresco e o silêncio é permeado pelo cantar dos pequenos bichos que habitam a montanha. A luz crua e artificial pouco interfere com o que o horizonte nos oferece. O Rifugio Pian de Fontana, a 1632 metros de altitude, situado na encosta sul do Cime dei Bachèt, encontra-se sobre uma espécie de varanda. O lugar ideal para comtemplar a profundidade que o escurecer proporciona à paisagem montanhosa. Por aqui, o solo está coberto por um frondoso relvado. Sinto com agrado esta leveza debaixo dos meus pés. Foi este piso suave e macio que, no final da tarde de hoje, acarinhou os nossos passos esgotados.
A meio da tarde, tínhamos tacteado com cautela a nossa última escalada: abrupta, estreita e de rocha fragmentada. Este pequeno e acentuado trecho, foi, sem sombra de dúvida, para mim, o mais difícil de percorrer. Fiquei aturdida não pela fadiga que fui sempre sentindo nos dias anteriores, mas pelo medo. Com os pés já em terra firme, no cimo de Forcella de Zità Sud, a 2451 metros de altitude, sentámo-nos no chão, cada um fechado em si. Como recompensa, a passagem pelo cume tinha-nos proporcionado uma vista cénica e grandiosa sobre as colinas circundantes. Poucos minutos depois, demos início à longa descida até à modesta cabana. Com a paisagem aberta e à medida que descíamos, com a rapidez que nos era permitida, fui sentindo na atmosfera quente o leve odor acidulado. Um aroma distinto que, nos últimos dias, se tinha tornado característico na paisagem mais inóspita do trilho Alpino. Foi aqui, nesta vertente da montanha, que a pequena edelweiss (Leontopodium alpinum) mais preencheu a paisagem. A sua flor branca e de forma estrelada, vigorosamente despontava por entre as rochas claras. O nosso olhar facilmente se desviava na sua direcção, mas ela não se deu a intimidades. Afastámo-nos dela, apressados. Ela, por sua vez, permaneceu exactamente ali, a vivificar a atmosfera. Já a marmota-alpina (Marmota marmota) que de muito perto auscultava, de cabeça erguida, os ruidosos e estranhos vultos que se aproximavam, rapidamente se entranhava entre a parca vegetação. Deixávamos então de sentir o seu olhar. Questiono-me se ela deixava de sentir o nosso.
De mochila às costas, tentamos aproximar-nos da montanha, mas não passamos de meros trajectores. Tentamos comunicar com ela, mas a sua voz é outra, tão diferente e distante que não somos capazes de a ouvir. Dificilmente nos conseguimos abstrair de um sentimento remoto de conquista. Não nos deixamos partilhar com a montanha, escolhemos estar sempre em destaque. Não nos deixamos engolir.
Observo, ainda, a luz natural que se vai esbatendo gradualmente na simplicidade do conjunto edificado, cada vez menos visível na paisagem pouco humanizada. Observo a densidade das sombras que se vão formando ao meu redor. Reparo nas parcelas ressequidas e frágeis da minha pele nua, batidas pelos raios do imperioso sol. A minha pele não veste a penugem da nativa edelweiss. Espero pela minha vez para um último banho. Deixo que a água gélida da montanha penetre em profundidade nos meus poros. O meu corpo pesa, cada vez mais. Ao mesmo tempo, nesta última tentativa de fusão com a montanha, sinto a minha alma suspensa. Estou agora no limbo entre o que é ser-no-mundo e o que é estar-no-mundo.
No sossego do cansaço dos caminheiros, a noite cai ao ritmo do universo, independente do palpitar dos nossos corações. Deixo que o sopro da montanha me invada. Respiro profundamente. Encho o meu corpo com o ar fresco deste lugar pleno que vivo agora de perto, mas de onde estarei sempre distante. Desejo, em segredo, partir da montanha em apneia. Em Caminhada, Thoreau escreve: creio que há qualquer coisa no ar da montanha que inspira e que alimenta o espírito.1 É esse o meu ardente anseio quando tento adormecer dentro do meu saco-cama.
1 Henry David Thoreau, Caminhada, 3ª ed. (Lisboa: Antígona, 2018), 42.
