Senti-me seguro, sim, ainda não se ouvem bombardeamentos, o som dos canhões. Ontem à noite pensei que tinha começado. Levantei-me sem acender a luz nem abrir as portadas, liguei o rádio e, na estação que estava sintonizada, passavam a dobragem de uma entrevista a um psiquiatra morto sobre o antropocénico. Um claro sinal de que não se passava nada de novo, de que a integridade territorial continuava por violar e de que a minha língua continuaria a ser falada. Mais tarde apercebi-me de que o som que ouvira era o ribombar de uma trovoada distante, algures na planície por onde passa a fronteira, talvez do lado de lá, não sei. A eletricidade, no seu estado selvagem, não se rege por esses limites. Tal como a erva do Müller, que continua a crescer sobre a fronteira indiferente às vontades humanas. A menos que o tal antropocénico de que falava o psiquiatra lhe dite outra sorte, que a obrigue a mudar-se para paragens mais amenas onde a guerra, mais cedo ou mais tarde, também chegará. É isso que a vida, e não falo apenas da minha, mas de toda uma linhagem, me ensinou: cada dia de paz é menos um dia que falta para a próxima guerra.
Limito-me a imitar quem é daqui até me tornar indistinguível. A senhora da frutaria, por exemplo, continua a abrir a sua loja todos os dias às oito, exatamente às oito, à segunda badalada do sino da igreja. Talvez ela não saiba quem foi Kant, mas não é dada aos excessos do construtivismo. Queixa-se, por vezes, de que já não se fazem minorias como dantes, que dessem cabo destes novos invasores em potência e de que o regime das chuvas já só permite maçãs aguadas, ainda assim melhores que as provenientes do estrangeiro. Vocifera contra o medo de manhã à noite, afirmando uma coragem que nunca foi testada, mas de que ninguém duvida. Basta olhar para a forma como dispõe as paletes para se perceber que não está para brincadeiras. Basta olhar para o seu gesto ancestral. Ou o carteiro. O carteiro tem o seu roteiro, que cumpre escrupulosamente todos os dias da semana. Quando o ano passado o pirata informático encomendou uma quantidade inusitada de traquitanas que chegaram todas no mesmo dia, não foi capaz de cumprir os horários e teve um esgotamento. O que o derrotou foram as convulsões internas, não os bárbaros. E durante os meses em que esteve de baixa, rodeado da sua família no estrangeiro, todos nós aprendemos a sobreviver à anarquia do seu substituto, que agora já não é mais que uma memória distante, um pesadelo do qual sobra o grito na escuridão. O que foi? Não sabemos, uma alteração, uma altercação. O carteiro voltou com as cartas de outros e as feridas próprias que ninguém diz. Não foi nada. Nem uma lápide com o seu nome.
E a professora primária. A forma como vos olha depois de crescerdes e a forma como supomos que se olha sempre que o azar lhe põe um espelho no caminho. Ninguém gosta dela, exceto eu, que não fui da sua classe.
É como vos digo: todas estas pessoas passaram por guerras em vários tempos e primeiras pessoas. Não serão os jornalistas nem os eleitos nem as proclamações que as farão vacilar. Têm problemas mais graves, outros medos mais profundos com que lidar todos os dias. Todos nós, e creio que já posso dizê-lo assim, sabemos do que alguém é capaz para matar o seu próprio erro — não o erro que cometeu, mas o erro que o cometeu, que o fez, que o constitui. Essa ecologia dos defeitos indizíveis é a cola deste lugar, como de outros, o que define o autóctone. E quem não contribui para esse segredo não poderá nunca compreender-nos. Perante esse erro e os seus estilhaços, invasão nenhuma assusta, guerra nenhuma ultrapassa a dignidade de uma conversa de café. Muito menos quando ainda nem sequer se ouvem os canhões.