(Mariana Barros Silvestre entrevista o dr. Pichón R.)
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Onde Mariana e Enrique Pichón R. subvertem a lógica hierárquica binária e realizam uma improvisação a duas mãos a partir de um standard de Proust e Carlos de Oliveira.
— Olá Enrique. Desta vez quero dizer-lhe que o nosso programa foi ouvido e mereceu, de vários leitores, críticas e comentários.
— Folgo em saber. Vai ler alguns?
— O primeiro não é particularmente simpático para si, Enrique. Vou passá-lo, está gravado: (ouve-se uma voz feminina)
Olá, Rádio Osso. Aqui Caetana Cadaval. Sou uma ouvinte assídua. Mas esperava mais do vosso programa. E do dr. Pichón, sobretudo. O modelo do programa, com uma rapariga meio tonta e um patriarca sapiente, é, desculpem expressar-me assim, irritante. Eu sei que o senhor é um psicanalista respeitado. Mas julgava que essa treta da psicanálise, do divã, do coiso que ouve e da boneca que conta os sonhos ingénuos, era cena do século XX. Olha, Mariana, encosta-me esse gajo à parede. Vê se percebes: o vosso programa não existe fora de uma taxonomia binária e hierárquica. O homem e a mulher. O velho e a jovem. O professor e a aluna. O pater familias e a menina em integração rápida no sistema de poder da indústria fármaco-pornográfica. Adeus, fiquem bem.
— Oh, Mariana. Vou ter de ouvir isso com mais atenção. Mas será que esta amiga do Cadaval ouviu o nosso programa sobre Paul B. Preciado? Não tem mais intervenções… para podermos depois… responder em conjunto?
— Acho que a intervenção pública é caraterizada por isto mesmo. Não ouvem nada, mas julgam tudo. (Tristeza de Mariana) —Responder em conjunto é uma técnica excelente, concordo. Pode ser que o conjunto seja mais redondo, menos anguloso, que as questões seguintes sirvam de invólucro a esta. Que o embrulho não seja assim intratável. É isso?
— É isso mesmo. (O dr. Pichón, subitamente enérgico)
— Então vamos ouvir a segunda questão. (Nova Pausa. Aquele momento em que se percebe que o técnico de som não é assim tão bom) —Aqui está! Trata-se de outra gravação. (Ouve-se nova voz feminina)
Olá Mariana. Dr Pichón, viva. O meu nome é Inês Lemos.Esta questão é principalmente para si. Gostava de partilhar consigo uma preocupação, para ouvir a sua opinião especializada com a sensibilidade que o caracteriza.
A S., minha filha, é muito dependente de mim. Sempre que tenho de me ausentar à noite para algum trabalho, ela chora desde que saio até que eu volte ou que o sono a vença. Ouço, amiúde, que ela sofre com esta dependência e que a culpa é minha. Há alguma forma de ajudá-la? Devo procurar ajuda especializada? Obrigada desde já. (Mais uma branca. Percebe-se que estão a tomar uma decisão, talvez a consultar, com um olhar furtivo, o produtor. Depois, ouve-se o dr. Pichón)
— Mariana, podemos subverter um pouco este programa? Proponho que responda e eu a acompanhe na resposta.
— Enrique, não tenho a mínima preparação para isso. Mas li a sua entrevista sobre a noite e o sono, posso tentar iniciar uma resposta. (Mariana parece ter tido uma ideia divertida e estar inesperadamente confiante)
— Vamos a isso.
— Então se o tema é a noite e a infância eu começaria com Proust.
— O começo de La Recherche … (Mariana começa pausadamente, como se lesse)
— As primeiras 80 páginas de A la Recherche du Temps Perdu são praticamente sobre as dificuldades que o narrador proustiano sentia, na infância, com o sono solitário. Proust escreveu La Recherche nos primeiros vinte anos do século XX e a infância do narrador proustiano decorreu no último quartel do século XIX. Mas o sofrimento da criança face à noite é semelhante ao que hoje adivinhamos através das queixas e relatos de muitas mães contemporâneas.
— Como a desta gentil mãe…Inês Campos. (O dr. Pichón ainda não percebeu completamente onde deve entrar)
— Para a criança proustiana o pior dos castigos é ser mandada cedo para a cama. No quarto em que não dorme, está atento às vozes da sala, ao desmanchar do serão, ao momento em que as visitas se despedem. Ele espreita esse momento, emboscado junto à porta, antecipando o ruído dos passos da mãe na escada…
— Emboscado! Gosto muito, Mariana.
— Ele conhece os ruídos da noite, a respiração das árvores dispersas nos sobrados, o queixume das arcas, dos armários, os diálogos silábicos que mantêm com os tetos trabalhados, travejados, as vigas, as ripas, os barrotes…
— As árvores dispersas pela casa. Muito interessante. É uma ideia sua, Mariana?
— Uma palavra roubada a Carlos de Oliveira, no poema Estalactite. (o dr. Pichón está surpreendido. Mas percebe que não deve interromper mais aquela espécie de transe criativo)
— Continue, não quero interromper.
— Ele ouve o morse das aves noturnas, os silêncios, os chamamentos. Ele conhece o vento, como uiva e quando se cala é para voltar. A ondulação das vinhas, o chicote dos ramos da araucária. O zumbido longínquo da máquina que se liga no centro da Terra.
E o coração a bater nos canais do ouvido interno. E os soluços do seu choro que começou agora e
se prestar atenção
nunca mais parará de ouvir. (Madalena cala-se e o dr. Pichón faz uma pausa longa. Não quer refrear o entusiasmo de Mariana, mas sente necessidade de manter o fio narrativo da resposta)
— Sim, Mariana, a criança que o narrador proustiano foi está emboscada à porta do quarto…
— … abrindo apenas a porta e vendo crescer a sombra da vela na parede — Ele conhece as paredes verticais, a cal das paredes, a tela onde se projetam as figuras da noite
— As praias de cal, desertas, verticais… (Agora é o dr. Pichón quem cita Carlos de Oliveira)
— Sabe que o seu aparecimento desencadeará na mãe a cólera, o desapontamento.
— Não consigo dormir. (o dr. Pichón, imitando a voz de uma criança)
— É o que diz, ou se ouve dizer. (Mariana está entusiasmada. Acelera a narração) — Está desesperado. O bastante para assim perder a sua reputação, que tanto lhe custou a construir…
— E regredir a uma zona obscura da infância. (Pichón, ainda a medo, tateando através da reação de Mariana a correção da réplica) — E voltar a ser este animal assustado, ignorante, a criança instintiva de que falavam os antigos (Ouvindo Pichón, Mariana baixa a cabeça em assentimento e dá a deixa que o dr. Pichón espera)
— Tolos, imbecis, sentimentais sem razão, aguardando que alma desça sobre eles ou as leis da educação lhes deem algum comedimento
— Ele tenta tudo. A febre. A doença. Envia mensagens à mamã. O seu tremor assusta.
— Por vezes está cansado. Talvez vá adormecer. Sente-se a adormecer. Mas não quer entrar nesse mundo onde a mamã não existe. Esse mundo primitivo onde insistem em lançá-lo. O sono profundo é a vitória da morte. O poço da noite. O mergulho na inconsciência. De onde não sabe se voltará. Não quer saber. (O diálogo entre eles ganhou uma energia própria. A partir de Proust e de Carlos de Oliveira, eles soltaram-se e improvisam com entusiasmo. As interrupções são apropriadas, as réplicas fluem com naturalidade)
— Sabe algumas coisas simples, pelo contrário. Sabe o que quer.
— Quer a mãe entre ele e o mundo.
— Quer a fogueira que assusta os animais. O ruído dos ramos a quebrarem-se no fogo. As chamas a levantarem uma cortina para o mundo. Quer a segurança da tribo.
— Mas mediada pela mãe.
— Pelo cobertor do corpo da mãe. Pelo seu cheiro, o toque da sua pele, os cabelos, por lugares improváveis, as axilas, as pálpebras, os lóbulos das orelhas. Lugares para os quais desconhece as palavras.
— Quer poder usar o seu cérebro livremente. Sem a ditadura dos glicocorticóides, nem da ansiedade. Quer a voz da mãe a perdoar por ser tão fraco… (Mariana faz um gesto de desagrado divertido ao ouvir glicocorticóides e quando interrompe imita a voz de uma jovem mãe que perdoa e exprime todos os seus sentimentos)
— A mãe gosta de ti e não deves ter vergonha de ter medo da noite. A mãe gosta de ti, quis que tu existisses e irá contigo aos Festivais, enquanto quiseres, e ambos gostarmos.
— O dia apagará as sombras da noite. (O dr. Pichón declama, solene, e depois aspira fundo como se se tivesse apercebido de um engano, refaz-se do transe criativo e continua, recuperando o tom solene de outras jornadas) — O narrador proustiano enquanto criança jovem é um exemplo terrível da forma como continuavam a ser educadas, no Ocidente, durante os séculos XIX e parte do século XX, as crianças de estatuto social elevado. Afastadas dos pais, educadas por amas, mostradas aos pais esporadicamente, “vistas, mas não ouvidas”.
—Deixe-se disso, Enrique. (Mariana rindo-se) Se agora está a responder à Caetana, isso fica para outro dia.