Número 5

29 de Maio de 2021

PAIS E MÃES PARA FILHAS E FILHOS

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DR. PICHÓN R.

— Hoje, gostava que me falasse do sono das crianças, Dr. Pichón.

— Boa tarde, Madalena. Encontra-me num estado propício à abordagem desses temas. Vamos a isso. Mas antes gostava de lhe falar da noite.

— A noite, como as crianças a vivem? (receosa)

—A grande Noite periódica na história da humanidade. O momento em que uma face da Terra entra na penumbra enquanto outra se ilumina. (ilumina-se a voz do Dr. Pichón ao entrar na obscuridade) Olho para milhares de anos atrás. Vejo alguns, atrás de uma fogueira. Não podem dormir todos ao mesmo tempo. Alguém tem de estar atento. Aos pequenos ruídos da noite. Um barulho de folhas pisadas, uma súbita deslocação de ar, um uivo ao longe. E há outros que só cochilam. Os velhos, cujo sono se fragmentou. São os últimos a levantar-se, quando há alarme. E se, porventura, há que lutar ou deslocar-se rapidamente, eles estão em desvantagem. Não podem ficar para trás ou esse atraso ser-lhes-á fatal. (tomando fôlego) Vejo as mulheres com filhos pequenos, que amamentam. Têm de participar na vigilância global e na do sono das crias. (percebe-se que faz sinais com os dedos) Estes movem-se, fazem ruídos, denunciam a posição do grupo, alimentam-se das tetas, voltam a adormecer.

— Cena fantástica. A sua descrição é muito cinematográfica. (ambígua)

— É fácil imaginarmos esta cena. Já a vi muitas vezes, no passado. E agora, ultimamente, com mais frequência. Conservamos o equipamento biológico destes antepassados. Sentamo-nos como eles, agachados. Vemos como eles. Interpretamos os sons como eles o faziam. Temos a mesma fome e a mesma sede. O mesmo medo. Rimo-nos e choramos. Desenhamos. Entramos uns nos outros “animalescamente”. (detém-se para dar lugar à reação dela, que não surge) Agora temos colchões, almofadas, construímos muros, instalamos câmaras que veem na escuridão. Alguns especializaram-se na segurança e percorrem a noite com feixes de luz.  Criámos a ilusão da diferença na superioridade. De que somos a espécie eleita. Que a cultura nos tornou independentes da biologia. Mas um pouco antes de anoitecer, bem no centro do cérebro, onde os anatomistas místicos procuraram a alma, um acontecimento ocorre, pontual.  A pequena glândula pineal começa a libertar mais melatonina, como sucedia com os nossos ancestrais. E quando os animais na noite se levantam, nós entorpecemos e encostamo-nos uns aos outros.

— Nem todos dormem do mesmo modo, é bem verdade.

— O vosso Jorge de Sena escreveu um poema que começa assim (pausa, parecendo hesitar)

Respira docemente

Eu sei como respira quem dorme ao pé de mim.

— Os poetas não dormem, é isso? (trocista)

— Berta Isla, a Penélope de Javier Marías, depois de Tom, o marido, a ter possuído, “se quedaba vigilando unos minutos, interpretando su semblante y su respiración”. (fingindo não a ouvir)

— Costuma ser assim. As mulheres possuídas, os homens possuindo. As mulheres vigiando, os homens dormindo. (o tom dela, entre o enfado e o cansaço não esconde uma revolta prestes a explodir)

— O sono profundo dos homens pode ser trágico, Madalena. Lembremo-nos de Dalila. Ou de Judith.

— O Dr. Pichón identifica-se com Sansão? Ou com Holofernes? (Separando as sílabas de Ho-lo-fer-nes)

— Nunca fui juiz, conhecido pela força. Nem nunca levei a guerra aos judeus. (refletindo, como se fosse acrescentar alguma coisa) Seja como for, não gostaria que, traiçoeiramente, durante o sono, uma mulher em quem confiasse, entregasse os meus cabelos aos filisteus.

— Antes os cabelos que a cabeça. (cortante)

— Nem os cabelos, e muito menos a cabeça. Dalila e Judith estão aí para nos lembrar que, mesmo na civilização mais requintada, o sono profundo é perigoso. Os bebés muito pequenos não adormecem muito profundamente.

— Adormecem enquanto mamam. Mas se são deitados, no berço, estremecem e logo acordam, geralmente a chorar. Uma amiga dizia que o berço do filho parecia ter cardos. (animada, à medida que fala)

— Sim. As crias humanas são altriciais e em busca de vinculação. Imaturas, dependem dos progenitores durante uma temporada muito longa. Calculo que ser retirado do peito da progenitora, do calor da sua pele e do compasso do seu coração seja sentido por elas como uma traição. As crias humanas não querem adormecer profundamente porque receiam o abandono. A separação é a morte. Os pequenos lactentes são capazes de chorar com grande intensidade, correndo o risco desse comportamento atrair predadores, para em troca atraírem uma mãe que se afastou.

— Que dramático, Dr. Pichón. Quando diz que a separação é a morte, está a falar simbolicamente, quero crer?

— Pelo contrário.  Estou a dizer, exatamente, o que quero. Literalmente. Um bebé humano que perdeu a mãe, vai morrer. De falta de alimento. De falta de vinculação. De Morte Súbita.

— Que horror. Quer-nos assustar? Olhe que este programa é levezinho. (riso nervoso)

— Quero contar-lhe uma história. No século XX, os fabricantes de leite e de ilusões começaram a dar leite de vaca em pó, modificado, aos bebés. E farinha de cereais e leite. Para os bebés dormirem profundamente e os pais poderem fumar à vontade, enfaixaram-nos e deitaram-nos de bruços.

— Está a criar uma narrativa… abjeta, Dr. Pichón.

— Estou a simplificar, certamente. Mas foi o tempo dos seus pais e avós. O meu tempo de juventude, na Argentina. Acredito que fosse diferente na Europa. Mas recordo-me de vir a Espanha no final dos anos 70 e um grupo de médicos de Madrid apresentar um trabalho sobre a frequência da amamentação. E a linha de regressão indicava que, se nada fosse feito, a amamentação humana acabaria antes do ano 2000.

— Acabe a sua história, por favor, doutor.

— Assim alimentadas e quentinhas, aconchegadas, as crias humanas dormiam profundamente. Sossegadas. Num quarto próprio, que as casas tinham espaço. E começaram a morrer.

— Não acredito. (horrorizada) De quê?

— De causa desconhecida. Subitamente. Sem que qualquer infeção, ou outra causa, fosse detetada. Chamaram-lhe Síndrome de Morte Súbita do Lactente (SIDS). E uma especulação que existiu, e reuniu muita evidência, foi a de que os bebés estavam a dormir demais e demasiado profundamente.

— E sozinhos! (exagerando a compreensão do argumento, aliviada por finalmente encontrar um ponto de concordância)

— Sim, como se o sono profundo, demasiado longo, diminuísse os reflexos de proteção das vias aéreas dos lactentes, tornando-os mais fracos, mais suscetíveis.

— De se engasgarem? De deixarem de respirar? Silenciosamente?

— Vítimas de Judith e de Dalila. (solene)

— Um massacre dos inocentes. Esperemos que o Salvador tenha sobrevivido.

— Aprenderam-se grandes lições. Curiosamente, um movimento semelhante, de contornos muito mais graves surgira na Europa, muito bem documentado em França ao longo do fim do Antigo Regime, nos séculos XVII e XVIII. Tratou-se do abandono dos recém-nascidos, expostos[e1]  nas rodas ou instalações da Igreja. O movimento das amas de leite, igualmente, em que os filhos de famílias da nobreza ou da burguesia eram entregues a supostas amas da província, mediante uma oferta em dinheiro, e grande parte não sobrevivia.  

— E as lições foram, então?

— Que o aleitamento materno e a vinculação precoce eram insubstituíveis. Que a fisiologia do sono do bebé, junto da mãe, em curtos blocos, devia ser estudada, respeitada e não contrariada.

— Interessante que se debruce por estes temas…

— Eu ouço a noite, Madalena. Sou como as mulheres. Vejo os homens a adormecer. Vejo o sono dos bebés perto das mães. Como se mexem, e elas estendem um braço sem chegar a acordar, tocam-lhes levemente e esse toque os aquieta. Como se agitam para mamar. Vejo os sonhos dos mais velhos, no quarto ao lado. Um que caiu à água e está a ser perseguido por tubarões. Outro que aprendeu finalmente a voar e voa por cima dos muros e fronteiras. Outro que defronta o palhaço assassino, o mais temível dos monstros dos pesadelos, que nunca foi vencido. Vejo o sono dos meninos da Argentina, em estádios de futebol. E das mulheres de Salas, rindo-se dos gaúchos. (a voz do Dr. Pichón vai-se apagando, ao longo da extensa frase, até ficar inaudível. Nesse momento ouve-se a voz de Madalena, vibrante, como os atores que acabaram uma peça e se dirigem à boca de cena para recolher a ovação).




Quatro dicas sobre o sono dos bebés, dos Pais e Mães.
Por Madalena Zuarte e pelo Dr. Pichón R.

  1. O seu filho é único. Não perca tempo com os conselhos do Dr. Pichón R. Durma como um animal.
  2. Não confie em mulheres que perguntem de onde vem a sua força. Mas se acredita que a sua força vem dos cabelos longos, merece Dalila e os filisteus.
  3. Dormir, mamar, havia de ser tão fácil.
  4. Se os monstros se escondem debaixo da cama, ponha o colchão no chão.