Número 12

16 de Outubro de 2021

EXCURSÕES

No país da fauniflora

Paulo Ventura Araújo

Cymbalaria muralis

Em suplementos de jornais e sítios de promoção turística, em esforçados textos de lírica apreciação dos paraísos onde o escriba em férias terá atingido a almejada comunhão com a natureza em estado puro, ou até, mais preguiçosamente, em breves postagens com fotos no Twitter ou no Facebook – somos, por todos esses meios e mais alguns, insistentemente informados de que são a fauna & flora que fazem o carácter único de certas paragens. Que entidades mágicas serão essas, fundidas numa só como as duas faces de uma divindade, capazes de singularizar um local mesmo sendo invocadas, sem mais explicações, a propósito dos lugares mais díspares?

Qualquer pessoa de inteligência mediana saberá que, no nosso planeta, a fauna & flora estão por todo o lado, tanto na terra como no mar. Há fauna & flora (podemos simplesmente chamar-lhe vida) mesmo nas regiões polares e nos desertos mais inóspitos, e mesmo nas cidades revestidas de betão e asfalto. Da minha janela ouço o grasnar das gaivotas, o arrulhar dos pombos, o canto intrincado dos melros; acompanho o esvoaçar dos pardais e, com sorte, das andorinhas; vejo os gatos nos muros e ouço à noite as suas desavenças: tudo isto é fauna. Se é a flora que me interessa, ela é representada pelas árvores nas ruas (sim, podia haver mais) mas também, em menor escala, pelas ervas espontâneas nos muros e nos interstícios das calçadas. Em poucos metros de muro é possível às vezes contar 10 a 20 espécies de plantas, e quem se dedique à macro-fotografia tem aí quase tantas oportunidades de obter imagens misteriosas e sedutoras como numa selva tropical.

Assim, se tentarem atrair-me para uma serra, ilha ou seja o que for dizendo-me, sem entrar em detalhes, que lá se encontram fauna & flora, eu só posso declinar o convite respondendo que já tenho isso ao pé de casa. Claro que acrescentarão que as ditas f & f são notáveis ou muito especiais, mas a única informação que esses qualificativos transmitem é que quem os usa não sabe do que está a falar, desconhecendo por completo os animais e plantas mais singulares ou característicos do local em questão. Ressalvo que essa ignorância é inteiramente desculpável para quem vai só para relaxar ou apreciar as vistas. Quem fala sobre as f & f notáveis, porém, está a exortar-me a conhecer algo que, ao que lhe consta, vale mesmo a pena, mas que o próprio nunca se deu ao trabalho de conhecer.

Para aprendermos a observar plantas pode ser mais proveitoso darmos uma volta ao nosso quarteirão do que uma volta ao mundo. Deixo aqui um exercício para principiantes: encontrar, a menos de 100 metros de casa, num buraco do passeio ou numa fenda de muro, exemplares floridos de Cymbalaria muralis. Esta planta, de folhas semelhantes às da hera mas muito mais pequenas (com 5 a 6 mm de diâmetro), é das mais astutas colonizadoras vegetais do meio urbano. Vistas à lupa, as suas minúsculas flores rosadas, pintalgadas de amarelo, são tão bonitas como as dos jardins. Quando se formam os frutos, os pedúnculos dobram-se, procurando as rachas do muro para depositar as sementes. Qualquer muro onde a planta se acolha tem, só por isso, uma flora muito especial, e quem estiver atento verá que a fauna também lá ronda por perto.