Número 14

13 de Novembro de 2021

NOTAS DO ARQUIVO

Notas do Arquivo

FRANCISCO FEIO

SLA/LS/VIS/V-1914-030

A nota desta semana pertence a um conjunto de imagens que Lazar Slavick trabalhou em torno de diversas fotografias que fez a grupos escultóricos, com especial atenção para o famoso grupo de Laocoonte, muito depois de este ter deixado o Louvre e regressado ao Vaticano. Conhecemos o interesse de Slavick pela reprodução de obras de arte (1) e este é um tema que atravessa toda a sua produção. Tinha predileção em fotografar não apenas as obras mais conhecidas, expostas ao público, como as que jaziam nas reservas dos principais museus europeus, às quais tinha fácil acesso. Atraía-o a solidão das esculturas, atiradas para longe do olhar dos visitantes e sobre isso ele escreve abundantemente nos seus cadernos (2). Fotografa-as em condições difíceis em termos de iluminação, o que faz com que a maioria dos seus negativos apresentem uma notória falta de exposição e de contraste. Um número significativo das obras fotografadas tem evidentes sinais de degradação o que será para ele um motivo acrescido de interesse. A perfeição pouco lhe interessava; gostava do lado débil das imagens porque as aproximava da fragilidade do fotografado (3). Também fotografava cópias de esculturas, que circulavam um pouco por todas as academias e em algumas coleções privadas. Neste caso estamos perante uma cópia do grupo escultórico feita em Itália e muito provavelmente destinada a exportação. Nestes casos, enquanto duplo em segundo grau, cópia de uma cópia, a fotografia era como uma mise en abyme da autenticidade original da obra (4), uma perda da aura como se lhe referirá mais tarde Walter Benjamin (5). Contudo, para Slavick, quer através da fotografia quer do tratamento que dava às imagens, era como se estas ganhassem uma nova vida, independente da sua origem. Na verdade, tratava-se de criar uma nova realidade, com as suas próprias regras e características que não existiam para além da imagem, invertendo o postulado de Benjamin, como se a fotografia conferisse uma nova aura ao fotografado (6).

Esta imagem em particular será, provavelmente, um estudo para um trabalho maior que ou nunca chegou a ser feito ou do qual não existe nenhuma cópia conhecida. Ainda que possa ser apenas um estudo, ou um esboço, é uma peça de notável modernidade. Trata-se de uma colagem de fragmentos de três fotografias diferentes da escultura, em que tenta compor a imagem total do conjunto (ainda que não numa visão mais cubista da fragmentação utilizando pontos de vista diferentes, mas fotografias feitas quase do mesmo ponto de vista). A parte central e um pequeno fragmento do lado esquerdo são impressos em papéis comuns claramente reaproveitados de outras utilizações, rasgados à mão, sensibilizados pelo próprio Slavick e recorrendo a diferentes técnicas de impressão, a que se junta um terceiro fragmento impresso numa pequena folha de papel fotográfico industrial. Este lado de reconstrução por camadas da imagem do conjunto, não pode ser desligado da zona particular da figura escultórica sobre a qual incidiram as fotografias. Trata-se da zona do polémico braço que se acreditava perdido e que foi reconstruído por Jacopo Sansovino (1486-1570) sob orientação de Rafael (1483-1520) tendo este optado pela representação mais conhecida em que Laocoonte aparece com o braço esticado (versão que está na origem destas fotografias). Apesar do braço não ter sido inicialmente agregado à escultura, mas sim utilizado em reproduções, sê-lo-á definitivamente por Giovanni Antonio Montorsoli (1507-63), discípulo de Miguel Ângelo (1475-1564) (7). Assim, o que nos é apresentado nesta colagem é uma tentativa de reconstrução simbólica da figura, respeitando o carácter fragmentário do fotografado. Também não nos podemos esquecer que a data mais que provável desta colagem é 1914, numa época em que a Europa se está a desagregar e a caminho da que virá a ser, à época, a mais mortífera e destrutiva guerra dos tempos modernos. Este regresso ao classicismo, sobretudo tendo em conta a própria história de Laocoonte e da sua morte, sob um olhar claramente contemporâneo é também uma reflexão sobre o ar dos tempos que se respiravam.  

  1. ver nota de arquivo no número 8
  2. … la mélancolie immobile des figures emprisonnées dans la pierre… [SLA/LS/MISC/N45]
  3. Esta aproximação entre a fotografia e o fotografado já estava patente nas antotipias já apresentadas nos números anteriores.
  4. Quand je re-garde les images que j’ai prise, en les voyant, je les garde à nouveau, comme une nouvelle prise de vue. […]  En réalité, je suis le prisonnier de ce piège du regard. [SLA/LS/MISC/N45]
  5. Ver Benjamin, W, A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica
  6. O que não estará longe de algumas leituras críticas da questão da aura e da fotografia em Benjamin
  7. Curiosamente, Miguel Ângelo nunca acreditou na tese do braço esticado, defendendo que o braço estaria dobrado, o que se veio a verificar ser verdade quando, em 1957, foi descoberto um fragmento expressivo do que se acredita ser o verdadeiro braço da figura.