Número 19

5 de Fevereiro de 2022

NOTAS DO ARQUIVO

Notas do Arquivo

FRANCISCO FEIO
SLA/LS/VIS/EXP-C010-01



Correm os últimos meses de 1898 e Lazar Slavick recebe uma carta inesperada de Londres. Vem assinada por Émile Zola (1840-1902), na altura exilado do outro lado do canal, pedindo a sua ajuda (1). Zola explica que tinha abordado um membro da Royal Photographic Society acerca de uma questão técnica que tinha encontrado na sua prática laboratorial e este o tinha aconselhado a falar com Slavick, dando-lhe a sua morada em Bruxelas. Ainda há uns meses ele e Slavick tinham trocado correspondência sobre diversas fórmulas utilizadas experimentalmente nalgumas séries que o nosso fotógrafo andava a produzir (2). Zola estava com dúvidas em relação a algumas soluções e, sabendo que Slavick já tinha passado pelo mesmo, perguntava se este o poderia ajudar a ultrapassar o impasse (que neste caso se prendia com a obtenção de uma prova com tons o mais neutros possíveis). Com a carta vinham algumas amostras de impressões derivadas de diversas técnicas utilizadas e este foi o ponto de partida para uma troca de correspondência que acabou por não durar muito tempo dada a morte prematura de Zola (3). Contudo, ainda deu para que ambos acabassem a discutir alguns dos princípios que os aproximavam da fotografia, mas sobretudo todos aqueles em que se afastavam. Há uma vontade documental em Zola, de registo da realidade visível das coisas e do mundo, que muitas vezes utilizava para a sua escrita, que diz pouco a Slavick, sempre preocupado com que as suas imagens correspondessem mais a uma resposta emocional face ao encontro entre o fotógrafo e a realidade. Como se o papel das fotografia fosse o de revelar (literalmente) uma realidade escondida, uma realidade que o espetador apreende a partir da experiência do olhar (4). A fotografia importava, enquanto experiência, mais como uma fenomenologia das sensações e não como um mero registo superficial da realidade, que resultava na criação de um mero ersatz por mais qualidades que pudesse apresentar. E Slavick conhecia bem a utilidade deste tipo de fotografia e nada tinha contra ela; apenas não estava interessado (4).  Já de regresso a Paris, Zola envia-lhe um dos seus famosos autorretratos, nomeadamente aquele em que aparece de perfil, impresso irrepreensivelmente em cianotipia. Slavick agradece e retribui com um autorretrato, também em cianotipia, mas em que a imagem direta de Slavick não é a dele, mas da sua sombra projetada numa parede. Se a fotografia é um substituto da realidade, então porque não substituir o objeto fotografado pela sua sombra, que é ela própria uma imagem primeira do próprio objeto? A imagem final é assim uma representação de uma representação, uma quase mise en abyme reforçando a ideia do afastamento entre a realidade e o seu duplo. Não conhecemos a imagem que terá sido enviada. Apenas temos um teste feito depois do negativo original, em vidro, se ter partido e da emulsão se ter destacado ligeiramente do suporte. É uma prova mais tardia, posterior a 1902, já que Slavick escreve num dos seus cadernos que se Zola ainda fosse vivo ter-lhe-ia enviado esta prova, muito mais fiel e verdadeira que a outra, bem impressa, que lhe tinha enviado na época.



(1)   Para além da produção óbvia no campo da escrita, Zola foi um grande entusiasta da fotografia, não só ao nível da captação de imagem, como do trabalho laboratorial. Instalou laboratórios nas suas três casas em França, e mesmo no exílio, em Inglaterra, manteve um laboratório em funcionamento onde se dedicava a imprimir o mesmo negativo com diferentes técnicas tentando obter o resultado ideal de reprodução para cada imagem.
(2)   Relembro o tempo que Slavick investia na experimentação ao nível da produção de provas positivas, o que já foi relado em notas anteriores.
(3)   Slavick admirava Zola. Já o conhecia da escrita, mas o que acabou por consolidar essa admiração foi a sua coragem no processo Dreyfus. No seu atelier de Bruxelas, pregou na parede a famosa primeira página do L’Aurore de 13 de janeiro de 1898 com a carta aberta ao presidente francês: “J’accuse… !”. Após a morte de Zola ainda pensou que gostaria de fazer um trabalho em que o texto aparecesse juntamente com a imagem fotográfica. Na sua cabeça a colagem com a incorporação de pedaços reais de jornal em interação com a fotografia já fazia um lento caminho. Faltava-lhe a prática. Foi preciso esperar alguns anos para que as colagens cubistas dessem forma ao que trazia dentro de si.  
(4)   Genericamente, Zola tem dois tipos de produção fotográfica: uma fotografia de carácter documental que respeita aos lugares e acontecimentos da sua época e outra em que documenta a sua vida privada, o crescimento dos seus filhos, a relação quer com a mulher ou com a mãe dos seus filhos e onde se podem incluir os autorretratos e os retratos dos seus amigos.
(5)   Este desejo de afastamento da representação e da dependência ao visível foi sempre muito forte em Slavick, salvo nas poucas encomendas que teve e que tinham de respeitar os princípios da encomenda. Para Slavick, a fotografia era definitivamente uma arte da representação que deveria encontrar a sua linguagem e seguir o seu próprio caminho.