Número 21

5 de Março de 2022

NOTAS DO ARQUIVO

Notas do Arquivo

FRANCISCO FEIO

Nesta nota, referimos a relação de Slavick com um personagem um pouco esquecido e cuja memória se perdeu ao longo do tempo. Falamos de Henrique Alvim Corrêa (1876 – 1910), artista de origem brasileira que ganhou breve notoriedade em 1906 por ter ilustrado a edição francesa da Guerra dos Mundos de H. G.Wells (1). A edição e a produção das ilustrações, realizadas com a técnica da gravura, terão sido supervisionadas pelo próprio Wells, que o selecionou quando este lhe mostrou, em Londres, uma série de esboços que tinha feito a pensar numa provável edição futura. Uma vez que a edição Belga estava em preparação, Wells não hesitou em convida-lo para fazer as ilustrações. Corrêa tinha nascido no Rio de Janeiro e tinha emigrado para a Europa com a família, a iniciativa do seu padrasto. Primeiro para Lisboa, em 1892 e no ano seguinte para Paris, onde estuda pintura no atelier de um pintor de cenas militares. Casa com Fernande Barbant, filha do gravador Charles Barbant, que tinha ilustrado Jules Verne e gravava as placas para Gustave Doré. Corta relações com a família e parte para Bruxelas, onde se instala. É nesta altura que os dois se encontram, através do interesse comum pela gravura (2).  Apesar de Slavick ter lido o livro de Wells, não é o texto que os une, mas sim o gosto pela construção de um mundo imaginado que, um dia poderia vir ser o nosso, no caso de Wells ou numa visão complexa e fantástica da nossa narrativa religiosa e que Slavick tinha encontrado e admirado no El Escorial, perto de Madrid, na pintura do Jardim das Delícias de Bosch. Sobre este quadro, Slavick tinha trabalhado utilizando reproduções fotográficas de fragmentos da pintura que trabalhava quer com técnicas especiais de impressão, como o bromóleo e a impressão a carvão, complementadas com intervenções manuais de pintura e desenho. O resultado era depois fotografado e impresso em fotogravura e novamente colorido manualmente. A sua ideia era fazer um conjunto de ilustrações que refletissem sobre o tema da pintura de Bosch, utilizando a própria obra para o efeito. De acordo com algumas notas de Slavick, ambos terão discutido questões relacionadas com o papel da ilustração enquanto criadora de um universo específico ao dar corpo visual a uma construção que já era, ela própria, fruto da imaginação de um autor. Uma meta-narrativa, na passagem do texto à imagem e que poderia, deveria, poder viver de forma independente deste.

A imagem que acompanha esta nota faz parte de um conjunto de 5 provas que sobraram desse projeto em torno da pintura de Bosch (3). Esta é uma imagem de teste, um fragmento de uma composição maior, posteriormente impressa em fotogravura e colorida à mão como as restantes do conjunto. Aqui trata-se apenas de um teste fotográfico, impresso em papel, com algumas marcas de tinta e que muito provavelmente pertence a um dos estádios intermédios, antes da reprodução final para produção da placa de fotogravura. Também existem alguns testes de imagens impressas antes do processo de colorização, mas a maioria encontra-se em mau estado, tal como estes testes intermédios. Com alguma probabilidade terão existido algumas destas provas que tenham sido coloridas à mão, mas não se consegue localizar nenhuma.  Certamente que uma tal descoberta, a acontecer, acrescentaria um valor inestimável a este conjunto. Ao contrário da coloração das provas finais em fotogravura, em que a tinta é aplicada de forma suave de modo a misturar-se com a base de imagem, nos testes é habitual que Slavick varie a espessura das camadas de tinta e que faça experiências quanto aos modos de aplicação, o que torna estes exemplares em objetos híbridos que misturam fotografia e pintura salvaguardando as características de cada uma das técnicas, tal como se pode ver em muitos outros trabalhos que chegaram até nós.
 

  1. A maior parte da sua obra perdeu-se em sucessivos desastres. Em 1914, grande parte terá sido roubada ou destruída após a tomada de Bruxelas pelos alemães e, mais tarde, em 1942, parte da obra desaparece quando o navio que a transportava é torpedeado por um submarino alemão. Para além deste interessantíssimo conjunto de ilustrações, a sua fama saiu reforçada com a edição em 1908 de uma edição em Viena das suas Visions Erotiques, assinadas com o pseudónimo de Henri Le Mort, um conjunto de 20 desenhos de carácter erótico reproduzidos em gravura.
  2. A julgar por alguns comentários de Slavick nos seus diários, ele terá contribuído com algumas ideias e desenhos para a prensa que Corrêa construiu no seu atelier de Watermael-Boitsfort, nos limites de Bruxelas que confinam com a Flandres.
  3. Uma versão deste conjunto, de produção moderna, tentando recuperar a cor e o aspeto da edição original, foi apresentada em Coimbra em 2018, integrada na exposição O Jardim das Delícias.


SLA/LS/VIS/V-1906-042