A nota de hoje não diz respeito a uma série de fotografias ou a um conjunto de experiências criativas como as que Lazar Slavick nos habituou e que têm vindo a ser mostradas ao longo desta série de artigos de exploração e divulgação do seu espólio fotográfico. A fotografia que a ilustra apareceu num dos seus cadernos (1), acompanhada de uma série de notas dispersas que dizem respeito a uma longa reflexão sobre a fotografia e a sua relação com a memória, que Slavick foi construindo ao longo da sua vida. É frequente encontrarmos este tipo de pensamentos dispersos por várias anotações nos seus cadernos, por vezes até em fragmentos de papel acrescentados entre as suas folhas, noutros momentos em páginas seguidas em que comenta um texto, relata uma conversa ou discorre sobre um tema quase sempre em torno da imagem fotográfica.
A questão da memória é importante para Slavick desde o início. Conhecia e admirava o texto de Arago (2) que se transformou num dos textos fundadores da fotografia. Para além de toda a componente química e física, descrita por vezes com algum fulgor quase poético, era o programa delineado para a fotografia que interessou Slavick. Sobretudo a parte da memória, da fotografia através das suas características técnicas se poder constituir como um registo, um documento e construir um corpo/ repositório de memória do mundo visível. A sua atividade de editor, em parte, acompanha este movimento tal como a sua extensa produção no campo das reproduções de obras de arte. E se pensarmos no seu fascínio pelos gabinetes de curiosidades, não é de estranhar que tenha recebido com grande entusiasmo e interesse o Atlas de Warburg (3).
Há um outro lado relacionado com a memória que lhe interessava igualmente e que se prendia com a relação entre o fotografar, a fotografia e aquele que a olha (sobretudo no caso em que que espetador e fotógrafo coincidem). Apesar da poderosa relação de semelhança, a fotografia não passava de um ersatz, um mero substituto em tudo inferior ao fotografado. Assim, de que modo poderia a fotografia pretender criar esse corpo de memória vivida, construída, com tão pouco? Com tanto para preencher na reconstrução da memória do objeto fotografado, na realidade, ele ia desaparecendo na imagem. Era neste momento que as palavras de Kafka lhe faziam mais sentido: fotografamos os objetos para os afastar do nosso espírito.
Um último aspeto relacionado com a questão da memória e a que Slavick dedica muita atenção, prende-se com as formas de registo da memória física dos objetos. Chegamos assim à fotografia que acompanha esta nota. Slavick diz que quando foi ocupar a casa (4) reparou que numa das divisões, que não estava forrada a papel, havia umas marcas na parede que indicavam ter estado pendurado um quadro, ou talvez mesmo dois. A luz que irrompia por uma grande janela tinha gravado, ao longo dos anos, a sombra do objeto na parede. O que Slavick viu de imediato naquelas marcas foi uma fotografia, foi o processo fotográfico autoexplicado através dos vestígios que o objeto tinha deixado na parede pela acção da luz. Ao fotografar esta fotografia, ou melhor, este fotograma (que foi a base das experiências iniciais da fotografia) o que estava a fazer era uma espécie de uma metafotografia e uma arqueologia dos vestígios que, cada vez mais, lhe parecia que toda a fotografia era. A parede, tal como a superfície sensível do material fotográfico, surgia como superfície de inscrição da luz em momentos distintos, através de objetos diversos, tal como nos palimpsestos a escrita ia surgindo em camadas onde por vezes aparecia à transparência o texto anterior. Tal como na pintura, o pentimento deixa adivinhar o pensamento anterior do pintor. Os vestígios fugidios que registou naquela parede, simbolicamente representavam a debilidade e precaridade da imagem fotográfica e da realidade que inevitavelmente lhe escapa. Sobre isto, ainda deixou um desabafo: Ainda me faltam ferramentas para encetar tal tarefa; mas estou certo que um dia alguém escreverá uma história da fotografia como uma história de vestígios e de um desaparecimento (5).
(1) SLA/LS/MISC/N33
(2) ARAGO,François, Rapport de M. Arago sur le daguerréotype, lu à la séance de la Chambre des députés, le 3 juillet 1839, et à l’Académie des sciences, séance du 19 août
(3) Atlas Mnemosyne, última obra de Aby Warburg (1866–1929), composto em 1917 com cerca de 1000 imagens de proveniências impressas distintas
(4) Slavick não especifica a que casa se refere, mas estamos em crer que se referia à casa de Paris por um pequeno detalhe numas páginas mais à frente em que refere uma conversa, com Zola, no Café de la Paix, há uns dias.
(5) SLA/LS/MISC/N62