Se quisermos traçar a genealogia desta imagem, teremos de recuar até aos anos de Berlim, entre 1892 e 1896 quando Slavick conhece o pintor norueguês Edvard Munch (1863–1944) (1). É através dele que sabe do paradeiro de uma pintura de Caspar David Friedrich (1774-1840), Das Eismeer (1823/24), que estaria em Dresden na posse de um pintor alemão, de nome Johann Siegwald Dahl (1827-1902) (2). “Nunca terás visto uma paisagem assim, tão desoladora, trágica, onde não somos nada face à natureza”, diz-lhe Munch, de acordo com os relatos num dos seus cadernos (3). Na sequência desta conversa, Slavick vai a Dresden, onde contacta Dahl e consegue ver in loco a famosa pintura de Friedrich. Duas coisas o impressionaram: a composição, totalmente oposta às convenções da época que, do modo como tinha disposto as grandes placas de gelo, impediam o olhar do espetador de entrar dentro da paisagem, chamando constantemente o olhar para a superfície da pintura e, por outro, uma certa artificialidade da representação que contradizia o que ele sabia da paisagem gelada do ártico e que confirmou ao saber que Friedrich nunca tinha visto tal paisagem. Conhecia os gelos do Báltico e dos rios da Alemanha. Neste caso até os conhecia de uma forma trágica. O seu irmão mais novo tinha desaparecido no gelo ao tentar salvá-lo num acidente de patinagem que quebrou a camada de gelo onde patinavam (4).
Esta aridez da paisagem interessava Slavick. Tinha conhecido o deserto, tinha viajado um pouco por todo o lado à procura não só do diferente como de outras formas de olhar e entender o real. Colecionava as fotografias dos irmãos Bisson sobre a ascensão ao Monte Branco, frequentava as sociedades geográficas europeias, toda a literatura sobre a exploração do ártico em especial as tentativas de chegar ao polo norte, todas elas falhadas, como foi o caso das expedições americanas Polaris (1871–1873) e Jeannette (1879–1881) e a norueguesa Fram (1893–1896). Os grandes gelos, a barreira que parecia marcar o fim do mundo, eram um dos seus destinos e lá iria quando a oportunidade surgisse.
Anos mais tarde, em 1906, numa das viagens de regresso dos Estados Unidos à Europa, por mera coincidência, viaja no mesmo barco em que Roald Amundsen (1872–1928) e a sua equipa regressam a casa, após terem completado com sucesso (1903-06) a primeira Passagem do Noroeste, uma via marítima que liga os oceanos Atlântico e Pacífico no Ártico, a bordo do navio Gjøa que ficou em São Francisco (e que acabou por regressar à Noruega em 1972). Slavick passa os dias a ouvir histórias da viagem, os momentos de desespero, de cansaço, de emoção, de depressão, sobretudo no que respeita aos longos momentos de espera, por vezes de vários meses, parados no gelo, aguardando condições favoráveis à navegação (5). O que mais o impressionou foram as descrições da paisagem do ártico: a aridez, a extensão, a sensação de insignificância e impotência face à violência da natureza. “Sublime” era a única palavra que lhe parecia resumir a experiência. De regresso, não descansou enquanto não rumou à Noruega e se conseguiu meter num dos barcos de exploração científica que iam até ao limite dos grandes gelos, como lhe chamava.
Slavick viajou com o seu equipamento, como habitualmente. Queria olhar essa paisagem e registá-la. A paisagem viu-a e pelas descrições no seu caderno, superou todas as suas expectativas. A fotografia é que não correu bem. Para além dos negativos regulares, resolveu fazer também negativos de papel. Dizia que queria uma técnica mais antiga com uma estética que o afastasse da nitidez e transparência do dispositivo fotográfico. Que introduzisse um certo flou, mais próximo do desenho e da gravura, uma mediação entre a visão e a realidade (6). Nunca tinha fotografado nem processado negativos a uma temperatura tão baixa. A química parecia não reagir. Experimentou diferentes temperaturas e num dos casos acabou por queimar ligeiramente o papel. É o caso da imagem que ilustra esta nota. Slavick escreveu que de entre todas as imagens que fez no lugar, fotografadas e processadas, socorrendo-se da água que obtinha de gelo derretido, esta era talvez aquela em que se revia de forma mais fiel em relação ao que tinha sentido no meio de um frio quase insuportável, de uma tempestade que se tinha levantado do nada e de uma violência física que desconhecia: uma paisagem impenetrável que parecia marcar um fim, um limite. Para além daqui, nada existe. No verso, a lápis, escreveu: ultima Thule
- Sobre Slavick e o círculo de artistas e intelectuais nórdicos em Berlim, Ver Nota de arquivo in Revista Osso #1 https://revistaosso.pt/notas-do-arquivo-1/
- Aparentemente inspirada na viagem falhada de William Edward Parry (1790–1855) ao ártico em 1819-20, Das Eismeer, mostra-nos uma paisagem em que largas placas de gelo irrompem em primeiro plano e onde se podem ver, por trás, os destroços de um navio esmagado por esta força da natureza. Pouco popular à época, foi comprada pelo seu pai, o pintor norueguês Johan Christian Dahl (1788–1857) após a morte de Friedrich e deixou-a ao seu filho. A pintura ficou sempre na família até ser vendida, em 1905, ao Hamburger Kunsthalle, onde hoje se encontra.
- SLA/LS/MISC/N9
- Slavick escreve várias vezes, na época, sobre esta história. Interrogava-se se a sua própria história não reaparecia por vezes nas suas imagens, mesmo sem dar por isso (e.g.SLA/LS/MISC/N10). Há um hiato nos seus cadernos em termos de datas. É provável que alguns escritos tenham desaparecido. Por vezes faz referências a escritos que não se encontram. Num deles refere umas imagens que o perseguem desde a infância e sobre as quais já escreveu quando andou a fazer algumas experiências sobre os cabinets de curiosités. Em particular sobre a memória da visão dos quadros na parede da casa de infância. Não se encontrou nenhum texto referente a isso.
- SLA/LS/MISC/N20
- SLA/LS/MISC/N24