SLA/LS/VIS/EXP-CO/16-012
Tal como referido anteriormente,1 Lazar Slavick viveu alguns dos anos da Grande Guerra nos Estados Unidos e parte desse tempo passou-o em Nova Iorque com Alfred Stieglitz. A proximidade entre ambos foi grande apesar do feitio difícil do americano. Talvez pelo lado perfecionista e enciclopédico de Slavick, no que respeitava aos processos de impressão, os dois discutiam detalhes dos processos que escapavam ao comum dos mortais. A dose certa de um químico, o detalhe de uma fotogravura, a melhor tinta para impressão, podiam comparar notas durante horas. Edward Steichen, participava sobretudo quando falavam de acrescentar camadas cromáticas nas impressões, área que dominava melhor que os antigos companheiros e membros do grupo da Photo Secession e da qual os três já se encontravam afastados. Não que Slavick alguma vez tenha pertencido ao grupo, mas no seu tempo não deixou de fazer algumas aproximações aos seus princípios estéticos através da utilização de objetivas de menor qualidade que enfatizavam a mancha mais que o detalhe, secundadas por processos de impressão que afastavam as provas do rigor e fidelidade da reprodução. Foi aliás nessas experiências que se foi afastando gradualmente da representação do real para se ir centrando na criação de uma nova realidade visual e material através da prova fotográfica. Era este o seu caminho, e era isso que também o afastava dos círculos fotográficos tradicionais aproximando-se sempre das vanguardas da época. Nesse aspeto, também era isso que o afastava do próprio Stieglitz que tinha algumas dificuldades em compreender as suas imagens fotográficas aparentemente sem qualquer relação com o real. E Stieglitz precisava do real, não para o mostrar, mas para o reinventar na matéria fotográfica, para o dar a ver através das especificidades do processo fotográfico independentemente do representado. Anos mais tarde, foi a radicalização deste princípio que lhe abriu caminho na criação dos famosos equivalentes.
Durante o tempo que passou em Nova Iorque, acompanhou algumas vezes Stieglitz para a sua casa de família em Lake George, onde tinha montado o seu laboratório (aliás, o único que era dele, quando, na cidade, utilizava laboratórios emprestados). É aí que Slavick toma contacto com grande parte do trabalho de Stieglitz. Não o trabalho final, aquele que via nas paredes da 291, a galeria que tinha na cidade, mas sobretudo o seu processo de trabalho no que respeita à produção das provas fotográficas. E se há fotógrafos a quem apetece ir ao caixote do lixo resgatar provas que os seus autores recusaram, Stieglitz era um deles. E Slavick, um pouco à socapa, resgatou testes falhados de provas várias de fotografias, hoje representativas da sua obra. Era um pouco como ter um caderno de esboços de um pintor. Alguns anos mais tarde, já de regresso à Europa, utilizou essas provas como base para uma série de experiências com química diversa. Algumas provas foram refotografadas para poder ampliar alguns pormenores e trabalhar a partir dessas ampliações, como é o caso da imagem desta nota que é um fragmento da The Hand of Man de 1908. O que lhe chamou a atenção, escreve num dos diários, foi “uma fissura na superfície da fotografia, na zona do céu com o fumo do comboio, que quebrava a ilusão criada pela representação e a fotografia tornava-se uma história sobre a natureza física do objeto fotográfico; foi isso que primeiro me atraiu quando inspecionava a sua superfície com uma lupa”. Slavick tinha este hábito de olhar a superfície das fotografias com uma lupa. A realidade que ia descobrindo, pouco a pouco, debaixo da lente à medida que a deslocava pela imagem, fascinava-o. Tanto ou mais que a descoberta, na revelação, de como a realidade aparecia feita imagem em contacto com a química. Mais uma vez, era a natureza da fotografia e do objeto fotográfico o que o atraía, mais que a representação em si.
O que ele faz de seguida com a fotografia é o mesmo que fará com outras de outros autores. Parte delas para a criação de uma imagem alternativa, uma outra fotografia, um olhar segundo sobre a realidade original representada que agora se torna numa abstração. O que o autor viu está lá, na fotografia suporte de intervenção e o que Slavick vê não é o que o outro viu, mas sim a fotografia tal como ela se apresenta. Raramente utiliza uma imagem na sua totalidade. Recorre sempre ao fragmento, alguns rasgados ou recortados das provas originais e outros, como neste caso, resultantes de processos de cópia e ampliação. Tudo isto dá trabalhos que vão desde o fragmento irregular de pequenas dimensões, a ampliações que rondam os 20×30 cm. Nenhuma das imagens desta natureza que restam no seu arquivo ultrapassa estas dimensões, o que acrescenta um certo intimismo na relação com a prova. Nenhuma destas imagens é feita para não ser vista na mão. Ainda pensa em enviar alguns exemplares a Stieglitz. É impedido a tempo por Steichen, que o tinha vindo visitar numa das suas frequentes deslocações à Europa, que o convence a não o fazer. É sua convicção que Stieglitz não gostaria nada de ver o seu trabalho utilizado deste modo. Ele tinha uma devoção especial às provas finais que saiam do seu laboratório, tendo chegado ao ponto de um dia comprar de volta uma fotografia que tinha vendido. Assim foi. Os trabalhos foram guardados e Stieglitz nunca viu como Slavick olhou e reinterpretou algumas das suas fotografias. Praticamente, ninguém viu.
1 Feio, Francisco, Revista Osso, Número 5, 29 de Maio de 2021