Número 4

15 de Maio de 2021

NOTAS DO ARQUIVO

Notas do Arquivo

FRANCISCO FEIO
SLA/LS/VIS/V-1915-086


No início da primavera de 1915, Slavick está a caminho dos Estados Unidos da América para fugir ao caos em que a sua Europa estava mergulhada. Tinha contactos em Nova Iorque, nomeadamente Alfred Stieglitz  (1864-1946), que tinha conhecido em Paris, em 1907 e a quem tinha escrito avisando das suas intenções de se estabelecer por uns tempos na sua cidade. (1)

O itinerário que desenhou previa uma paragem em Lisboa durante duas semanas, o que lhe permitiu voltar a alguns lugares que bem conhecia, visitar as coleções de história natural e ir até Coimbra rever conhecimentos que tinha na universidade e olhar mais uma vez algumas peças que tanto admirava, mas desta vez sem a companhia do seu amigo Bobone, infelizmente desaparecido do mundo dos vivos em 1910. (2)

O navio que o leva ao outro lado do Atlântico acaba por fazer uma escala forçada nos Açores devido a uma avaria na caldeira principal. Os dias que ali passou ocupou-os em parte em viagens pela ilha, em verdadeiras expedições fotográficas uma vez que viajava com uma quantidade apreciável de equipamento. No seu diário, descreve a sua relação com a paisagem relembrando outras, do seu passado, referindo que desde a viagem a Sarragalla e Kradak que não tinha um confronto com uma natureza tão esmagadora.(3)

A sua companhia nestes dias e que lhe serve de guia é nada mais, nada menos que Francisco Afonso Chaves (1857-1926), naturalista e fotógrafo açoriano, que Slavick tinha conhecido numa das suas incursões pela península arábica quando ambos eram bem mais novos e alguns interesses comuns os tinham levado aquelas paragens. Apesar de não terem mantido um contacto regular, iam trocando alguma correspondência onde iam descrevendo algumas das experiências que iam fazendo no campo da fotografia.

É desta curta estada forçada que nasce a fotografia que acompanha esta nota. Trata-se de uma vista do Pico do Ferro para a vasta cratera vulcânica do Vale das Furnas e da sua lagoa. Já no vale, inebriado pelos cheiros e vapores das águas ferventes, Slavick tem a ideia de utilizar aquele caldo químico na revelação e processamento da imagem. Impaciente por ver os resultados, pede para usar o laboratório do amigo. Recolhem águas sulfurosas, algumas lamas e também alguma água salgada junto à costa. Praticamente o resto dos dias foram passados no escuro do laboratório, imerso em químicas improvisadas, a fazer experiências, fascinado com o carácter telúrico das imagens que se iam revelando. Numa nota no seu diário (4), Slavick relembra Strindberg e as suas Celestografier.(5) O entusiasmo é tal que escreve : Si Strindberg avait connu cet endroit, l’histoire de la photographie aurait suivi un cours différent. Apesar do entusiasmo exagerado que está na origem desta entrada, para além de uma genuína afinidade que o ligava ao escritor, esta é de facto uma das características que atravessa a produção de Slavick ou seja, uma profunda ligação à experimentação sem ligar a regras, procurando sempre ir mais além na descoberta, sempre sem se preocupar se a prática ou os resultados cabiam numa das muitas vanguardas em torno das quais se organizava a produção artística da época. Talvez seja esta singularidade que torna a sua figura num caso raro da produção fotográfica e artística do seu tempo (ou dos seus tempos, já que muitas das vezes parece ocupar em simultâneo tempos diversos).

A inadequação da química utilizada, aliada a uma fraca fixação, estão na base da degradação desta imagem (as restantes que foram possíveis encontrar estão na mesma situação) criando um efeito que, conforme ele descreve no mesmo diário, j’aimerais que ces images changent de jour en jour au fur et à mesure que notre corps vieillit sans nous demander d’autorisation.(6) Nesta fusão entre o sujeito e a obra, reside um dos factores da modernidade de Slavick.



(1) Sobre esta ligação, falaremos em notas posteriores.
(2) Ver Francisco Feio, Le cabinet de M.V., in catálogo da exposição O avesso da cidade, Coimbra, 2016
(3) A este propósito ver Francisco Feio, folhas de sala do ciclo de exposições Die Inseln der Weisheit, Coimbra 2012
(4) SLA/LS/MISC/N36 pág 72
(5) Ver Francisco Feio, Notas do Arquivo in Osso1
(6) SLA/LS/MISC/N36 pág 76