Número 44

02 de Novembro de 2024

NOTAS DO ARQUIVO

Notas do arquivo

FRANCISCO FEIO

SLA/LS/VIS/EXP-C026-P03
 

É pouco provável que Slavick, tendo em conta o seu interesse pelas matérias científicas, não conhecesse o Essay on the modification of clouds que Luke Howard (1772 – 1864) publicou em 1803. Contudo, é a Johann Wolfgang Goethe (1749 – 1832) que ele credita o seu interesse maior pela problemática das nuvens, não só de um ponto de vista da classificação como do lado simbólico. Segundo algumas notas nos seus cadernos, os textos de Goethe ter-lhe-ão chegado por via manuscrita, cópias que lhe foram enviadas por alguém que não conseguimos identificar. Tinha alguns excertos dos seus diários, sobretudo das viagens de observação atmosféricas que Goethe tinha feito em 1820 pela Boémia, sobretudo em Karlsbad, Egen e Marienbad, a famosa estância muito frequentada na época pela aristocracia europeia. É aqui que em 1821, o septuagenário Goethe encontra a jovem Ulrike von Levetzow, por quem se toma perdidamente de amores e voltará a encontrar nos dois anos seguintes, tendo culminado com a recusa de um pedido de casamento, por receio da mãe da jovem sobre como a filha seria vista pela sociedade. Esta recusa marca o fim das estadas na estância e a produção de um dos poemas mais pessoais e significativos da obra de Goethe, a Elegia de Marienbad, composto na viagem de regresso, entre Egen e Weimar, onde descreve a devastação que lhe vai na alma. Este é o pano de fundo que nos traz à imagem que hoje apresentamos. Para Slavick já era claro que a fotografia não tinha necessariamente de ter um caracter representacional no sentido mais direto da palavra. Não era condição necessária que a fotografia representasse algo que fosse imediatamente reconhecido como tal pelo espetador. As inúmeras experiências com processos químicos, a procura de novas formas de impressão, as imagens obtidas por sensibilização direta dos materiais sensíveis sem recurso à câmara fotográfica, bem como as reflexões que as acompanham, são prova disso mesmo. Mas agora tratava-se de ir um pouco mais longe, criando imagens que não tinham um conteúdo diretamente ligado ao objeto fotografado. Uma nuvem não seria um tema em si; poderia ser um fragmento de uma cena maior, mas enquanto objeto de representação, não pretendendo ser um catálogo de condições meteorológicas, era uma imagem que se aproximava de uma abstração. Um poema como a Elegia, poderia facilmente ter uma tradução musical. A interrogação que atravessa Slavick era se uma fotografia poderia fazer o mesmo. Para o testar, viaja até Marienbad e vai observando e fotografando cumulus e cumulonimbos, repetindo os passos de Goethe que pode retirar dos excertos do Diário. E foi nestas grandes e densas massas de nuvens, que Slavick encontrou uma relação com a densidade e o peso do poema. Não temos uma datação certa para esta imagem, mas estamos ainda longe de 1922, a data em que Stieglitz começa a fotografar nuvens e a criar as suas famosas séries a que chamos Equivalentes(1). Trata-se de uma prova de teste, contaminada quimicamente, com resíduos de cianotipia que terá sido escurecida com tinta, provavelmente numa tentativa de coloração sobre uma base azul que acabou por se perder. O tom acastanhado parece ser resíduo de goma e tem também marcas de um líquido castanho que terá ocorrido por acidente. O papel está amarrotado, o que sugere ter sido descartado e mais tarde recuperado colado num dos cadernos, onde se encontrava. Por trás tem algumas indicações a lápis. Tem o local, Marienbad, a identificação da nuvem e a menção a ser um teste de impressão, com algumas indicações numéricas impercetíveis mas que sugerem referência a tempos de exposição.


(1) No verão de 1922, Alfred Stieglitz (1864–1946) começa a fotografar séries de nuvens deixando-se entusiasmar com as formas etéreas e abstratas produzidas pelas massas de partículas e vapor de água em movimento no céu (tal como já se tinha deixado seduzir pelo vapor nos terminais ferroviários ou nos respiradores da cidade). A estas fotografias, Stieglitz chamou “equivalentes”. Mais que descrever a superfície das coisas, como é característico na fotografia, a ideia era que as fotografias expressassem uma emoção pura, o estado interior do artista de uma forma não representacional, tal como acontece com a música. Como curiosidade, tinham passado 100 anos sobre os acontecimentos de Marienbad e foi neste ano que nasceu Alain Robbe-Grillet (1922-2008) que em 1961 escreverá o guião para o L’Année dernière à Marienbad de Alain Resnais.