Número 15

27 de Novembro de 2021

O DESPLANTE

Notas para Recordações de um Futuro Próximo

FREDERICO MARTINHO

I

Preciso de ir ao inacessível das memórias para saber onde estou. Nelas encontro o espaço necessário para as poluir de Futuro. Abre-se um clarão branco que preencho com tudo aquilo que se agarrou a mim, na fuga incessante do tempo, e, nesse clarão que me fere o quartzo dos olhos, cintilante como os horizontes de mar, adivinho as cidades que procuro, carregando-as na invisibilidade necessária do punctum caecum[1].

Reabro os olhos queimados, desço pelas dunas que parecem nevadas, de tão brancas. Construo as paredes de um santuário com as lajes trazidas das profundezas da terra e deixadas à beira do mar. A luz é quase tudo o que fica do Passado, mas também é ela que o destrói, sobreexpondo-o. Hoje, já nada existe das paredes que levantei no movimento da areia. Hoje, o mato cresce espinhado onde antes, despido, virginal, reflectia no chão uma claridade de prata. Nesse Verão a morte tomou conta da luz e fechou a casa, branca, numa treva. As imagens são sempre, como os pássaros, uma migração de asas, um alvo, uma cegueira que interrompe um diálogo de franqueza com o Sol, unindo uma fonte de água com o fogo do céu. Podia também dizer-se que o Passado (a Fotografia) é a morte inundada de luz; que os olhos servem menos para ver do que para chorar[2]; que do invisível tornado visível passamos para o point d’eau – o que de líquido se acumula em comoção, em sede, aspiração.


II

Ouvem-se dois tiros no ar, caem três aves na praia. Todos nós já errámos nas recordações. Talvez o brilho que descrevo seja a fulminação de um outro dia ou de uma outra noite. Talvez o disparo tenha vindo de um flash inadvertido ou de um orgasmo envolto na sua brancura de alabastro — também ele — sempre cego. Nas recordações, mesmo naquelas fixas em sais de prata, no triacetato de celulose, poderemos ter a certeza que voltámos ao mesmo lugar do registo. Naquele momento brilhou um real. Contudo, nunca saberemos, nesse breve instante de um pestanejar, com que certezas voltaremos a sair dessa explosão de luz.

(Explosão de luz.) Rodava a manivela de uma velha Bronica nos passeios em Berlim, ora pelos destroços, ora pelas vanguardas, disparando, sem guião, atraído pela força desses marcos, uns pela força histórica, outros pelo desvario do progresso. Era como se aquela cidade nunca estivesse a salvo da guerra e cada arquitectura fosse um alvo para a tragédia seguinte, e nós, os emissários sobreviventes[3] — ou vítimas por antecipação —  de uma dessincronização dos ritmos do tempo e do visível. Guardei os negativos (essa invisibilidade) na mochila. Já no aeroporto, os rolos, como eu, passam pelo raio X, desprotegidos. A vigilância, a super-iluminação, a transparência: todas nos destroem a superfície, julgando diminuir o risco de terror. Mas como as paredes cravejadas revelam o conflito que terá que ser constantemente reimaginado, também as fotografias cumprirão o papel de implicar um trabalho de Futuro. Por agora, ainda não sei se os clarões são o resultado dessa violação ou se da luta desigual entre a gravação e o desaparecimento. Sei que daquela cidade recupero, sobretudo, a frieza de um trauma e a palidez de uma cicatriz.


III

Um feixe de luz cega-me por instantes. Danço na vibração de uma pista onde um laser varre um arco de céu por cima das cabeças. O som passa pelo túnel como um espírito selvagem, soprando na cara uma rajada de vento. No rodopio das sombras, surge Sophia, de olhos fechados, somando escuridão na escuridão, ao ponto da própria espessura negra se tornar aura. Tinha as duas mãos ao peito enquanto vertia em lágrimas a absorção do choque das ondas. Ao meu cuidado respondeu apenas com a mais humana função dos olhos e uma pista para o nosso destino: I’m ok, I’m only enjoying being shot.




[1]Quando então eu digo que todo o visível é invisível, que a percepção e impercepção, que a consciência tem um `punctum caecum’, que ver é sempre ver mais do que se vê — não se deve compreender isto no sentido de uma contradição. Não há que imaginar que eu acrescento ao visível […] um não-visível. É preciso compreender que é a própria visibilidade que comporta uma não visibilidade.”
Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, 1964.

[2]No fundo, no fundo do olho, este não seria destinado a ver mas a chorar. No exacto momento em que velam a vista, as lágrimas desvelariam o próprio do olho. Aquilo que elas fazem jorrar para fora do esquecimento, onde o olhar a guarda de reserva, não seria nada menos do que a aletheia, a verdade dos olhos, de que elas revelariam assim a destinação suprema: ter em vista a imploração mais do que a visão, endereçar a prece, o amor, a alegria, a tristeza, mais do que o olhar.”
Jacque Derrida, Memórias de Cego, 1990.

[3] “This was the aim of the experiments: to send emissaries into Time, to summon the Past and Future to the aid of the Present. But the human mind balked at the idea. To wake up in another age meant to be born again as an adult. The shock would be too great. […] If they were able to conceive or dream another time, perhaps they would be able to live in it.”
Chris Marker, La Jetée, 1962.