A corrente era forte,
mas na outra margem havia pássaros,
toiros bravos a pastar e valados desconhecidos.
Soeiro Pereira Gomes em Esteiros
O meu Avô Leopoldino era o mais velho de sete filhos – uma família marcadamente masculina, criada no coração do Ribatejo. Foi o primogénito da Cristina e do Francisco. Depois veio o José, o Manuel, o Mário e o Francisco. E duas meninas: a Lurdes e a Conceição. Ele contava que se lembrava da Mãe sempre grávida, com um filho pela mão, outro ao colo e outro na barriga. O meu Avô era um homem de génio. Tinha uma personalidade vincada e um carácter que condizia com o nome e com o seu rosto inesquecível: olhos rasgados de castanha, nariz marcado num perfil romano emoldurado por um denso cabelo de carvão, que nunca ficou branco. Mesmo quando os anos lhe começaram a pesar, o cabelo nunca envelheceu. Negro, forte e brilhante, meticulosamente penteado em frente ao espelho dourado, pendurado sobre a credência que ocupava a entrada da casa. Essa é uma das memórias mais vivas que tenho dele: as mãos grossas e decididas a segurar um pente de dentes apertados e a fazê-lo deslizar entre o cabelo eternamente jovem.
O meu Avô era o filho mais velho de um cantoneiro e, porque veio de um lugar e de um tempo muito difíceis, começou a trabalhar com o pai na floresta ainda criança, com oito ou nove anos. O livro preferido do meu Pai era os “Esteiros”, do Soeiro Pereira Gomes, que ele tinha em todas as edições que alguma vez saíram do prelo – a original, a comentada, a ilustrada – e que me obrigou a ler várias vezes, sei-o agora, para que eu soubesse de onde vim. Embora os “Esteiros” tenham sido escritos dezasseis anos antes de o meu Pai nascer, aquela é a história do meu Avô e foi escrita para o meu Pai, filho de um homem que nunca foi menino. Qualquer uma daquelas cinco crianças – Gaitinhas, Guedelhas, Gineto, Maquineta e Sagu – que trabalhavam em vez de irem à escola, podia ser o Pai dele, a correr descalço à beira dos esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais, que roubam nateiro às águas e vigores à malta, mãos de lama, que só o rio afaga, descrevia o Soeiro, no livro que escreveu para o meu Pai.
O Avô Leopoldino, que também nunca foi à escola, acabou por ser levado pelo padrinho de batismo a aprender o ofício dele: pedreiro. Mais tarde, chegou a Mestre de Obras e foi responsável por grandes projetos, aquando do boom da construção civil, em Portugal. Ele, que só aprendeu a ler e a escrever já adulto, para poder tirar a carta de condução, lia como ninguém a planta de uma obra. Era um daqueles casos em que a profissão era indissociável do homem. Já era um perfeito workaholic, antes de inventarem o conceito. Talvez por ter começado a trabalhar ainda criança, o trabalho acabou por defini-lo e ele não sabia quem era se não estivesse a trabalhar. Nunca chegamos a saber quão fundas são as raízes que a infância enterra em nós.
Quando eu era pequena e perguntava ao meu Pai o que é que o Avô Poldino fazia, ele respondia com grande orgulho: “faz casas”. Aquilo parecia-me impossível, talvez fosse um problema de escala, eu tão pequena e as casas tão grandes para serem feitas por um homem. Mas, era verdade, o meu Avô fazia casas. Fazia-as com as mãos, como o padeiro amassa o pão: empilhava tijolos, uns em cima dos outros, colando-os com cimento; levantava paredes, rasgava janelas e portas, assentava mármore e madeira. E era capaz de deitar abaixo uma parede inteira e refazê-la, do zero, se encontrasse um tijolo fora do sítio, um centímetro que fosse. Tinha um genuíno orgulho nos edifícios que ergueu. Um dia, quando eu morrer, as obras que eu fiz vão continuar de pé, costumava dizer. O legado de um gigante gentil, a fazer filigrana com tijolos.
Não sei se era por ele fazer casas ou por eu ser tão pequena, mas as mãos do meu Avô eram enormes e tinham os dedos mais grossos que alguma vez vi. Umas mãos que pareciam ter força para agarrar o mundo. Era todo colossal, tinha uma força física que desafiava a minha compreensão. Não sei se era por ele fazer casas ou por eu ser tão pequena, mas nunca um homem me pareceu tão grande depois dele. Era um líder nato, era fácil segui-lo: seguro, confiante e confiável. Só tinha uma palavra. Para nós, sempre personificou a honra, a dignidade e a coluna vertebral. E também o génio – quando se zangava levava tudo à frente e parecia-se, muitas vezes, com os segundos que antecedem um sismo. Mas ria-se com gosto, e com covinhas, até ficar com os olhos molhados. Nunca foi menino, mas ria-se como uma criança. Encerrava estes mistérios, o meu Avô. Havia algo de indecifrável nele, como o desconhecido na outra margem de um rio. Parecia, em muitas coisas, uma personagem de romance. Era extremamente bonito e era um homem vaidoso, num tempo e num lugar que não permitia aos homens serem vaidosos: gostava de se vestir bem, de usar perfume e, já contei, penteava meticulosamente o cabelo. Adorava mulheres e as mulheres também o adoravam – era o seu calcanhar de Aquiles – mas tinha um sentido de família raro. Nós éramos a maior de todas as suas obras, o que é dizer muito, quando falamos de um homem que fazia casas.
No fim da vida, a doença de Parkinson acabaria por lhe roubar a força e a destreza física que sempre o caracterizaram, mas não o génio – quem conheceu o Leopoldino, sabe que isso era impossível. Podia estar vinte minutos para se levantar de uma cadeira, em batalha contra um corpo que já não lhe obedecia, mas não aceitava ajuda de ninguém. Não se pode dar confiança à doença, dizia. Outras vezes, já depois de se levantar: esta Puta! A Puta era a doença que o fazia tremer das mãos e lhe roubava o controlo dos movimentos, mas o meu Avô, que até como adversário era leal, nunca a deixou ganhar sem dar luta. Tenho muitas memórias do Leopoldino, mas quando fecho os olhos para o ver é sempre a imagem dele a pentear-se, já no fim da vida, que aparece primeiro. Quando ele se penteava, era como se a doença, tomada pelo pudor e pelo respeito, ficasse em suspenso por uns minutos, a dar-lhe tréguas. Por uns instantes, ele controlava o pente com a firmeza e a delicadeza de antes – de sempre. Foi sempre firmeza e a delicadeza, força bruta e filigrana. Talvez A Puta soubesse reconhecer um adversário leal. E a raridade de um homem que nunca foi menino, mas ria como uma criança.