Número 1

17 de Abril de 2021

PAIS E MÃES PARA FILHAS E FILHOS

O andarilho de bebé

Dr. Pichón R.


Artefacto com rodas que permite a locomoção às crianças que ainda não adquiriram marcha autónoma.

— Como o prometido é devido, o tema de hoje é o que antecipadamente anunciou: o andarilho. E agora, confiando no cumprimento de uma promessa ainda não revelada, posso dar alguns dados sobre a sua biografia. (misteriosa). É o que espero…

— Esteja à vontade. Parece saber muito de mim. (distante)

— Então, para o nosso auditório, posso revelar que o meu interlocutor, nesta rubrica semanal para Pais e Filhos e para Mães e Filhas, é o Dr. Pichon R.

— Está dito, Andreia. Vamos ao que interessa. O andarilho, assim definido, também apelidado de aranha ou andante, é um êxito nas vendas para crianças e, simultaneamente, estigmatizado nas recomendações dos médicos.

— Como é isso, doutor? (em tom zombeteiro)

— Pois é assim mesmo. Calcule que procurando ao acaso, num só site de vendas encontrei 48 ofertas distintas. Com quatro rodas, com duas rodas, com cadeira, com mesa de atividades…

— Mesa de atividades? Não estamos a falar de bebés? Em alguns casos com menos de um ano? (exagerando o espanto).

— É a designação que os fabricantes de brinquedos tornaram popular para mesas que incorporam rocas, campainhas, luzes, botões, teclados, mobiles, toda uma parafernália de gadgets para solicitar a atenção da criança.

— Sempre julguei que o andarilho era para andar.

— E tem razão. Mas o produto foi-se tornando mais complexo. Tudo isto tem a ver com a tendência para considerar que as brincadeiras têm de ser didáticas. Pedagógicas. A infância tornou-se simultaneamente um espaço e um tempo de hiper proteção e preocupação educativa. Como lhe ia dizendo, estes andantes podem agora ser automóveis sofisticados, vespas, camiões, tratores com reboque, animais. Podem ser empurrados como os dos adultos inválidos. Alguns têm um cabo para ser movido a empurrão. Outros permitem regular a altura, têm proteções para evitar danificar paredes e portas e incorporam sistemas de segurança como o bloqueio automático ao alcançar áreas com desníveis. (a última frase foi dita com ênfase, como se estivesse recitando um folheto de propaganda)

— Parece fantástico! Pergunto-me como pode alguém ser contra um produto destes?

— Pois olhe que pediatras, e em geral quem trabalha em saúde infantil, não têm grande simpatia por estas “aranhas”. A principal objeção é a de que podem ser perigosos. A DGS, no Boletim de Saúde Infantil, proscreve-os.

— A DGS também regula as brincadeiras dos bebés? (escandalizada)

— A Sociedade de Pediatria financiou mesmo um inquérito aos médicos pedindo a notificação de acidentes com “aranhas”. (sério)

— E a sua opinião?

— Sabe, eu comecei por ser contra. Não simpatizo com a indústria de brinquedos infantis. Nem com a ideia, por vezes subjacente, de que as crianças necessitem de estar rodeadas de peças acabadas, construídas segundo um plano educativo ou de entretenimento. E a minha atitude relativamente ao risco foi mudando. Mas isso interessa pouco.

— Claro que interessa. (condescendente)

— Hoje, sobretudo depois do que se sabe sobre a atitude educativa das culturas humanas tradicionais e das experiências de “escola da floresta” de países do Norte da Europa e Inglaterra, por exemplo, entendo que a atitude dominante na educação das crianças relativamente ao risco é incorreta e podia ser revista. O contacto com a Natureza, com a multiplicidade de situações que propicia, muitas delas imprevisíveis, é insubstituível. Corresponde ao passado da espécie. Permite reviver, naturalmente, a experiência que moldou o genoma humano.

— E isso tem alguma a ver com o andarilho?

— Tem a ver com a exclusão de uma atividade, de um brinquedo ou de um facilitador, baseada numa gestão incorreta do risco. Claro que para a maior parte das crianças, a antecipação da marcha autónoma é pouco significativa. Mas o treino da propriocepção e do sentido vestibular é ativamente procurado pelas crianças num determinado momento da sua evolução. Querem pôr-se de pé. Querem apoiar o peso do corpo nas pernas. Fletir e estender as pernas. Balouçar. Agitar os braços. Abanar o tronco. Testar o movimento e a posição do corpo e da cabeça. E este tipo de aparelhos pode facilitar este treino fundamental. E, num certo sentido, corresponder às suas necessidades. (progressivamente entusiasmado)

—Dr. Pichón R., permita-me uma evocação. Na casa dos meus avós havia uma oficina de carpintaria onde o meu avô passava as horas livres. Quando nasci ele construiu um andador. Estou certo que era andador, o nome daquilo. Perdi-o de vista, lamentavelmente. Era um cavalete simples de madeira com rodas. Eu apoiava-me nele e percorria a casa toda. Menos a cozinha. Não era permitido ir à cozinha. Talvez tivesse outros brinquedos. Mas nenhum como o andador.

— Andreia, agradeço essa recordação. Pode ter entendido as minhas palavras como uma reabilitação do andarilho. Isso não significa qualquer simpatia por essas peças horrendas que referi no início. O andador do seu avô era decerto uma peça adequada à sua descoberta do corpo e do seu lugar no movimento e no espaço.

— É talvez altura de acabar. Mas se introduzimos nestas entrevistas notas da nossa biografia, não resisto a uma última pergunta.

— As que quiser. Sinto que não desenvolvi  o tema como ele merecia.

— O Dr. Pichón R. encontrou Alejandra Pizarnik em Buenos Aires?

— Que pergunta surpreendente. Pois conhece Alejandra, a sua poesia? Sim, procurou-me quando regressou de Paris. Teria 28 anos. Mas receio que nos afastemos, assim, dos temas que escolhemos para as nossas conversas.

(com o gravador desligado)

— Dr. Pichón, isto não pode ser assim. Não pode defender uma coisa e o seu contrário. Não pode ter sido contra aquilo que agora parece defender. Eu sei que a vida é complicada. Mas alguma coisa na vida tem de ser simplificada. Pense nos seus ouvintes. E pense um pouco em mim. Não pode fazer psicanálise à Pizarnik e vender slings às mamãs. Sabe o que penso, ao ouvi-lo? Este velho vai agonizar sem ter sabido ser um merdas prático.)