“Man still bears in his bodily frame the indelible stamp of his lowly origin.”
Charles Darwin, The Descent of Man (1871)
— Hoje, dr. Pichon, se me permitir, escolho eu o tema. (misteriosa)
— Olá, Madalena. Venha lá esse repto.
— Então, se não se opuser, eu propunha que me falasse sobre o assédio, um tema que parece ter alguma atualidade.
— Madalena, esse é um terreno envenenado. Quando leio os posts inflamados das autodenominadas — com humor— Feministas histéricas, sinto que só tenho duas opções. Juntar-me ao coro dos acusadores, ou ao campo dos presumíveis suspeitos. De um lado, estão as vítimas e os que as apoiam incondicionalmente. Do outro, estão os culpados, assediadores, o círculo dos apoiantes, os que tornam possível o assédio sem punição. Este binarismo maniqueísta tende a considerar a sedução e o cortejamento como formas disfarçadas de assédio. Constrói uma sociedade atwoodiana de códigos e punições, onde do outro lado estão os homens, os machos, os agressores e uma multidão de assistentes neutros ou cúmplices. E deste lado, vítimas inocentes, “cordeiros imolados”.
— Devíamos ter começado por definir assédio. O que é assédio para si? (seca)
— A definição de assédio, no Aurélio, por exemplo, é a de “pôr cerco a uma praça fortificada”. E ainda a de “perseguir com insistência, molestar, assaltar”. Nesse sentido, são vocês, jornalistas modernos, os maiores especialistas no assédio.
— Lá tinham de vir os jornalistas… (impaciente) — Quando?
— Quando se emboscam para disparar perguntas, sem contextualização, só para construir uma caixa alta, para corresponder ao tema que erigiram em grande linha noticiosa, para confirmar uma cacha. Ainda o Aurélio… dá como exemplo de utilização do termo, a seguinte frase: “o repórter assediou o deputado para arrancar declarações”.
— Assediar um deputado é um pecado venial. (riem os dois)
— Voltando à definição que me pediu, Madalena. Aquilo a que atualmente nos referimos, quando falamos de assédio, é quase sempre o assédio sexual. Uma cronista definia-o, recentemente como “o comportamento sexual, verbal, físico com o objetivo de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a dignidade, ou criar ambiente hostil, degradante, humilhante ou perturbador.”
— Dr. Pichon, alguma vez foi assediado? (abruptamente)
— Durante um período demasiado longo da minha vida… infelizmente… uma paciente com um distúrbio classificado como síndrome De Clérambault perseguiu-me. Primeiro com bilhetes anónimos e mensagens. Depois com encomendas de bonecos de magia negra ou vudu, cartas extensas e, finalmente, com a sua presença repetida e incómoda. Mas não se tratava de assédio, como agora é classificado. Eu tinha uma posição social superior – condição da própria perturbação. Podia perceber o comportamento dela e tentar explicar-lho enquanto distúrbio.
— E fê-lo?
— Repetidas vezes sem sucesso. Era então psicanalista em Buenos Aires, com o consultório na Recoleta. Ela trabalhava numa loja de modas e morava no Retiro, vim a saber. . .
— Já assediou? Porque o fez? (como se tivesse pressa)
— Seguramente que não. Na definição referida, não. (pausa)
Mas repare na sua questão, Madalena. Não esperou que respondesse. Imediatamente me questionou sobre as razões do meu comportamento. Se conscientemente eu alguma vez tivesse tido como objetivo afetar a dignidade de alguém, homem ou mulher, seria uma pessoa detestável e não me orgulharia das minhas atitudes.
Lamentavelmente, esta mesma cronista que referi cita um estudo, cujo original desconheço e que revela que 79% das mulheres afirmam ter sofrido de assédio no trabalho, valores que sobem para 90% em meio académico.
— Esmagador. Não acha? (incisiva)
— Ou então estes dados sofrem de enviesamento. Sabe-se que o número de queixas é reduzido. Por isso, quando não é indicada a percentagem de respondentes é legítimo conjeturar que o reduzido número de mulheres que respondeu ao inquérito, o fez por se ter considerado vítima.
A hipótese que algumas pessoas, com destaque nos media e redes sociais, avançam ou que transparece das suas intervenções é a de que esta é a realidade. O comportamento seria o usual, as vítimas calam-se, logo, quando falam têm razão. E têm sempre, mesmo quando não identificam os agressores, ou estes não podem defender-se.
— Não acha que o movimento #metoo opõe todos os homens, presumidos culpados, contra todas as mulheres, presumidas inocentes?
— Se 90% das mulheres que trabalham em meio académico relatam ter sofrido assédio, então a conclusão só pode ser que o assédio é, aí, a forma dominante de relacionamento. Ainda há pouco uma professora de Latim acusou um colega de perseguição num congresso. Lembrei-me de livros deliciosos de David Lodge sobre os congressos de professores. Sobretudo desse Small World, um romance sobre a vida académica. Em 2012, Lodge, interrogado sobre se um livro desses seria possível então, ainda podia fazer humor e declarar que o maior reflexo do livro se deu na forma como as mulheres dos professores de teoria literária da Universidade de Birmingham passaram a olhar com suspeita os maridos quando estes regressavam das conferências. E acrescentou que, quando escreveu o livro, se destacava uma cultura “hedonista”, entretanto desaparecida e substituída por uma earnest sobriety.
— Se me recordo, nesse congresso só… (fazendo um esforço de memória) duas conferencistas eram mulheres.
— Sim, mas uma delas era Angelica Pabst e a sua intervenção foi memorável e pode ainda ser lida com atualidade.
— Será que Angelica Pabst, hoje, se queixaria de assédio, doutor? O assédio é, sobretudo, uma questão de poder sobre outro, não concorda?
— Sob o ponto de vista biológico, o assédio é uma forma de coação sexual numa relação de curto termo.
— Pode explicar melhor.
— A psicologia evolutiva classifica as relações sexuais entre os humanos, e não só, como monogâmicas, poligínicas ou de curto-termo. As relações de curto termo são mais apreciadas pelos homens que pelas mulheres. Como o investimento parental é muito maior nas mulheres, estas tendem a ser mais relutantes para relações de curto prazo. Os humanos desenvolveram um menu muito variado de relações, com diversas estratégias a que recorrem em diferentes contextos. O uso da violência é uma delas com a intimidação, a violação e o assédio.
— Estou a percebê-lo. (Insinuante) Essa teoria do macho perpetrador não pode servir para… como direi… naturalizar o assédio, considerar que se trata de algo normal, inevitável?
— Sim, claro que se presta a isso. A biologia pode ser utilizada como uma justificação de comportamentos que passam a ser vistos como eticamente neutros. Aquilo a que chama a falácia naturalista.
— Falácia naturalista. Deixe-me sublinhar. (divertida)
— Também existe a falácia culturalista, que ignora a biologia, aquilo a que Darwin chamou as “nossas mais baixas origens”. Mas permita-me que continue. O assédio sexual é um resíduo da diversidade de estratégias violentas utilizadas pelos machos humanos na procura de relações de curto termo.
A questão é que, entretanto, a maior parte das mulheres que não privilegiam relações de curto termo desenvolveram estratégias de contrapoder e de deteção das chaves, dos sinais comportamentais de violência. Que, numa fase como esta, podem dar origem a desvios paranoides de reconhecimento (como a que interpreta o pedido do sedutor para se sentar ao seu lado como uma forma de humilhação, ou a que, quando o parceiro de jantar lhe mostra uns comprimidos, reage como se ele estivesse a humilhá-la com uma grosseira alusão sexual).
— A violência que o abusador exerce sobre o outro é um pretexto para camuflar as suas próprias inseguranças?
— É sempre uma questão de poder e de contexto. Nas sociedades em que as mulheres ganharam direitos, as estratégias dos homens para relações de curta duração têm de recorrer ao cortejamento. O cortejamento é, para a conquista das mulheres, o que a diplomacia é para a guerra. Uma forma mais demorada e respeitosa, que dá às mulheres o tempo para uma avaliação mais cuidadosa e uma decisão não apenas baseada no fenótipo (idade, saúde, força física), mas também na capacidade de utilização da linguagem, no status, na cultura, no humor, na amabilidade.
— Como distinguir uma ação de assédio de um gesto inocente?
— Através da teoria da mente. Da intersubjetividade. Da capacidade de ler o cérebro do outro e de avaliar nele o respeito e a gentileza, ou a manha e a brutalidade. Mas, e não se zangue nem pense que cultivo o cinismo, isso a que chama de “gesto inocente” não existe.
— O que diria a Alejandra Pizarnik sobre estes casos que têm vindo a público?
— Isso é matéria para outra entrevista, se a brigada das Feministas Histéricas não soprar o fogo… nesta entrevista.
— Faltou-lhe um adjetivo, doutor Pichon?