Número 24

30 de Julho de 2022

PENÚLTIMA PÁGINA

Capital Stories

RÚBEN DIAS

A lágrima

Não sei quem roubou a minha lágrima nascente. Habituei-me a ter os olhos secos, um pouco vermelhos, do cansaço, do enfrentar dos dias. Tão pouco me recordo quando comecei a beber. Nem faço ideia se as duas coisas estão relacionadas.

O vinho exerce em mim um fascínio irresistível, como nenhuma outra bebida. Enrola-se nos lábios, afunda-se no palato, viaja pela garganta. Os seus inúmeros cheiros ficam presos no nariz. Aprendi a gostar de vinho com uma mulher. Ensinou-me o cheiro das violetas na Touriga Nacional. Aprendi a diversidade das castas, o terroir, as histórias. Misturei as histórias e bebi-as, juntamente com a barca da Ferreirinha, as perigosas viagens pelo Douro, o sangue e suor das vindimas. Vivi as suas vidas como se fossem minhas. Embebi-me.

Tolerei as inúmeras faltas humanas do vinho. Suportei os abusos ao trabalho, o pagamento de salários desiguais, a exploração em que assenta cada socalco. Mas era a nossa cultura.

Soube, com tristeza, que o vinho já não é nosso.

Pertence a sociedades mais ou menos anónimas cujo capital voa de diversos lugares como a Rússia, a China, Angola ou a Arábia Saudita, e injeta novas energias em adegas sofisticadas e outros investimentos enoturísticos. O vinho continua bom, talvez ainda melhor. Continua feito com o amor de alguém por alguma coisa em algum momento. Mas bebê-lo obriga ao esquecimento. Obriga a um não querer saber da proveniência. Há que concentrar os aromas no terroir e esquecer a terra. Há que acreditar que a origem do capital não interfere na denominação de origem.


***

O barco do amor

Pleasure vessels, é como são designados os yacht[1]. Os superyachts, ou megayatchts, são criações únicas, personalizadas, anunciadas com o slogan “if you can dream it we can built it[2].

Trata-se de embarcações que existem exclusivamente para o prazer do proprietário e dos seus convidados. Não há definição precisa nem restrições particulares. São feitos de materiais nobres como a madeira, aço e o alumínio[3].

Em Março de 2022, o superyacht “Amore Vero” foi apreendido[4]. As embarcações de proprietários russos têm vindo a ser capturadas nas águas dos países que impuseram sanções às empresas russas e oligarcas, em apoio da Ucrânia.

Cuidar de Amore Vero é custoso. Na Riviera francesa, o estaleiro La Ciotat Shipyards emite as faturas, mas não sabe quem as pagará. Uma das dificuldades está em estabelecer quem é o proprietário.

Os custos anuais dos superyacht podem ultrapassar 10% do seu valor. Na prática, podem custar milhões de dólares por mês.

Na Itália, os bens congelados são geridos por um administrador público e as despesas ficam a cargo do estado, que terá um dia de ser reembolsado pelo proprietário. Na França e em Espanha, os custos de manutenção são do proprietário, que pode não conseguir pagar por ter as contas bancárias congeladas.

Nos Estados Unidos, a administração de Biden não pode vender bens congelados. É a sua fiel curadora[5].

Pode passar despercebido ao cidadão comum que o capital, além de permitir a materialização de sonhos hedonistas, precisa de ser mantido. Somos moralmente obrigados a uma disciplina que evita o seu esbanjamento. O capital é racional. É a lógica da organização da produção e da criação de valor.

O capital, quando obtido de forma suja, pode ser congelado. Há culpa e vergonha nos números. São as vicissitudes da vida psíquica do capital. O trabalho tem de ser protegido. Que culpa têm os construtores de superyachts, a indústria europeia que cresceu 228% em dez anos? Que culpa tem a tripulação recrutada para estas embarcações[6]? Que culpa têm de trabalhar 20h por dia[7]?

Amore Vero servia o prazer de Igor Sechin, cuja alcunha é Darth Vader. É o presidente da Rosneft, empresa pública de petróleo russa[8]. Fala português.

Igor foi casado duas vezes. A segunda mulher, Olga Rozhkova, viajava no superyacht St Princess Olga, construído pela Oceanco em 2012. Depois do divórcio, o barco foi renomeado Amore Vero.


[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Yacht

[2] https://yachting-pages.com/articles/top-10-luxury-yacht-builders.html

[3] https://en.wikipedia.org/wiki/Superyacht

[4] https://www.voanews.com/a/in-france-a-seized-superyacht-creates-headaches-not-just-for-its-owner-/6514063.html

[5] https://theconversation.com/no-biden-cant-just-sell-off-seized-russian-yachts-and-central-bank-assets-to-help-aid-ukraine-international-law-and-the-us-constitution-forbid-it-182214

[6] https://www.boatinternational.com/charter/luxury-yacht-charter-advice/outrageous-superyacht-guest-requests–30013

[7] https://www.nzherald.co.nz/world/the-dark-side-of-life-on-a-superyacht-slave-conditions-and-mysterious-deaths/ZWWDV5ALYNU37LYQPZHR3LMOLQ/

[8] https://en.wikipedia.org/wiki/Igor_Sechin