Número 42

10 de Agosto de 2024

VIDA: EFEITO-V

O Céu do Rabi

CARLITO AZEVEDO

«Um dia

os hospitais serão

como nightclubs»

foi a frase que

há tempos

memorizei do filme

de Michelangelo Antonioni

para com ela

abrir um

novo poema

Ou para deixá-la

pura irradiação especulativa

talvez dissolver-se

na própria caminhada

de volta do

cinema do bairro

para casa


A dor de

Monica Vitti

pisa a

cabeça da serpente,

esmagadora,

arrasta atrás de si

um cortejo de

fantasmas exaustos

aparições do reino

do luto e da tragédia


Homens magros

agarrados ao

alambrado

do purgatório


Deixa que o

surpreendente

no amor

seja sua similitude

com o que chamamos

ready-made:


«a realidade sendo

reordenada

por uma mudança

de contexto

de luzes

de vibrações

de emanações»


(Como se consolasse

pensar que o amor

pode transfigurar

cada lágrima em

preciosa gota

de óleo para

as rodas de bicicleta

do paraíso)


Alguém lava

o rosto pela manhã,

ouvindo o alarido

dos pardais nas

árvores da rua


pensa:

pardais xintoístas


Alguém diz que viver

depende da posição

do olhar

para o sol

e não da quantidade

de busca de

uma verdade


Alguém medita

tenta imaginar

um lagarto no deserto

nas ondulações

de luz e areia

do deserto

sua materialização

sua desmaterialização:

a prova do deserto

o marulho do cosmos


Ontem sonhei

com Tamara,

também eu emergi

de um sonho

com nada nos

bolsos semânticos

ou nas mãos


Ela

(no sonho)

tinha o rosto

de Monica Vitti

e eu falava francês

como uma heroína

de Tolstói


Enquanto traduzia

O livro dos divãs

— com Paloma e

anos antes de um dia

me meter em um deles —

eu estava apaixonado,

escrevia poemas

péssimos, sinceros

e contava as moscas

perdidas nos bairros

em construção


Sentado no café

Moviola

à beira do tráfego

da rua das Laranjeiras

traduzia e ouvia

o rádio do café

anunciar

os 25 anos do Hubble

um concerto para clavicórdio

a tempestade perfeita


«Sempre existe outra

linha de leitura,

sempre existe outra»:


Deixa esses versos

retornarem

uma e outra vez

ao longo do livro,

resposta não-resposta

de esfinge,

de brâmane exposto

às quatro fogueiras


(De um e-mail para Tamara K.:


Para traduzir seu livro

eu lia todas as noites

antes de dormir

As fontes talmúdicas da psicanálise,

onde se lê que

«o que está justaposto,

está relacionado»)


Enquanto traduzia

O livro dos divãs

estava apaixonado

passava os dias

dentro da névoa

mental dos 30

segundos antes

de adormecer

e sonhar com a

tempestade perfeita


(Uma sensação reencontrada

depois dos 50

quando já não esperava

curvas perigosas)


«Vite, vite»

(depressa, depressa)

não cansava

de repetir

minha professora

de francês:


Teria sido essa

a associação do sonho?

Que te dispôs assim

em star italiana

dilacerada pelo eclipse?


E tua avó russa

recitando em iídiche

a história da Aliança

ricocheteou em mim?


Deixa, Tamara,

que aqui

de ultra-viés

neste poema

longo como

um lagarto

que arrasta o corpo

através dos vastos

impérios da

conversa fiada

eu me aproxime

um pouco

de você.

«Vite, vite»


Deixa que

o céu de Lukács

seja mais bonito

que o de Kant


e que o céu de Brecht

seja mais bonito

que o de Lukács


E o céu de Kandisnky

seja mais bonito que o

do pobre B.B.


e deixa que o céu

do Rabi

seja o mais

bonito de todos


Deixa que assim

se expandam as

fronteiras desesperadas

das abóbadas celestes

sob as quais

agora

alguém cruza

a avenida Rio Branco

apaixonado

se despedindo da vida

buscando uma janela

para a não-existência

colidindo contra o céu

(que gira:

função motriz

contra

princípio de inércia)


Deixa que ele olhe

pela janela

da não-existência

por um segundo

apaixonado pelo céu

aos pés

de Virgínia Woolf,

o mais bonito

de todos,

céu de outro

eclipse


Coda:


Alguém que você

nunca viu

corre desesperadamente

em sua direção


Alguém ou alguma

aparição do reino

do luto e da tragédia


Alguém como uma

contradição antagônica

num mar de

contradições

não-antagônicas


Alguém se afogando

na ganga mística

da avenida no ocaso

se despedindo do céu

apaixonado pelo céu


Alguém em cujas

esponjas cerebrais

jamais se fundariam

as bases inabaláveis

de um sólido império


Alguém que precisa

a todo custo

falar com você


Mas você é tão distraído

entra no carro

ou no cinema

ou no elevador

escapa

sem nem

saber que

escapa

do rodamoinho

no fundo

do caldeirão de

feiticeira

da história.


(ADENDO AO POEMA O CÉU DO RABI


O branco-azul

do teto

e das paredes


da sala

onde as

crianças


aprendem

a ler

é tudo


quanto

— por ora —

podemos


vislumbrar

do céu

do Rabi.)