«Um dia
os hospitais serão
como nightclubs»
foi a frase que
há tempos
memorizei do filme
de Michelangelo Antonioni
para com ela
abrir um
novo poema
Ou para deixá-la
pura irradiação especulativa
talvez dissolver-se
na própria caminhada
de volta do
cinema do bairro
para casa
A dor de
Monica Vitti
pisa a
cabeça da serpente,
esmagadora,
arrasta atrás de si
um cortejo de
fantasmas exaustos
aparições do reino
do luto e da tragédia
Homens magros
agarrados ao
alambrado
do purgatório
Deixa que o
surpreendente
no amor
seja sua similitude
com o que chamamos
ready-made:
«a realidade sendo
reordenada
por uma mudança
de contexto
de luzes
de vibrações
de emanações»
(Como se consolasse
pensar que o amor
pode transfigurar
cada lágrima em
preciosa gota
de óleo para
as rodas de bicicleta
do paraíso)
Alguém lava
o rosto pela manhã,
ouvindo o alarido
dos pardais nas
árvores da rua
pensa:
pardais xintoístas
Alguém diz que viver
depende da posição
do olhar
para o sol
e não da quantidade
de busca de
uma verdade
Alguém medita
tenta imaginar
um lagarto no deserto
nas ondulações
de luz e areia
do deserto
sua materialização
sua desmaterialização:
a prova do deserto
o marulho do cosmos
Ontem sonhei
com Tamara,
também eu emergi
de um sonho
com nada nos
bolsos semânticos
ou nas mãos
Ela
(no sonho)
tinha o rosto
de Monica Vitti
e eu falava francês
como uma heroína
de Tolstói
Enquanto traduzia
O livro dos divãs
— com Paloma e
anos antes de um dia
me meter em um deles —
eu estava apaixonado,
escrevia poemas
péssimos, sinceros
e contava as moscas
perdidas nos bairros
em construção
Sentado no café
Moviola
à beira do tráfego
da rua das Laranjeiras
traduzia e ouvia
o rádio do café
anunciar
os 25 anos do Hubble
um concerto para clavicórdio
a tempestade perfeita
«Sempre existe outra
linha de leitura,
sempre existe outra»:
Deixa esses versos
retornarem
uma e outra vez
ao longo do livro,
resposta não-resposta
de esfinge,
de brâmane exposto
às quatro fogueiras
(De um e-mail para Tamara K.:
Para traduzir seu livro
eu lia todas as noites
antes de dormir
As fontes talmúdicas da psicanálise,
onde se lê que
«o que está justaposto,
está relacionado»)
Enquanto traduzia
O livro dos divãs
estava apaixonado
passava os dias
dentro da névoa
mental dos 30
segundos antes
de adormecer
e sonhar com a
tempestade perfeita
(Uma sensação reencontrada
depois dos 50
quando já não esperava
curvas perigosas)
«Vite, vite»
(depressa, depressa)
não cansava
de repetir
minha professora
de francês:
Teria sido essa
a associação do sonho?
Que te dispôs assim
em star italiana
dilacerada pelo eclipse?
E tua avó russa
recitando em iídiche
a história da Aliança
ricocheteou em mim?
Deixa, Tamara,
que aqui
de ultra-viés
neste poema
longo como
um lagarto
que arrasta o corpo
através dos vastos
impérios da
conversa fiada
eu me aproxime
um pouco
de você.
«Vite, vite»
Deixa que
o céu de Lukács
seja mais bonito
que o de Kant
e que o céu de Brecht
seja mais bonito
que o de Lukács
E o céu de Kandisnky
seja mais bonito que o
do pobre B.B.
e deixa que o céu
do Rabi
seja o mais
bonito de todos
Deixa que assim
se expandam as
fronteiras desesperadas
das abóbadas celestes
sob as quais
agora
alguém cruza
a avenida Rio Branco
apaixonado
se despedindo da vida
buscando uma janela
para a não-existência
colidindo contra o céu
(que gira:
função motriz
contra
princípio de inércia)
Deixa que ele olhe
pela janela
da não-existência
por um segundo
apaixonado pelo céu
aos pés
de Virgínia Woolf,
o mais bonito
de todos,
céu de outro
eclipse
Coda:
Alguém que você
nunca viu
corre desesperadamente
em sua direção
Alguém ou alguma
aparição do reino
do luto e da tragédia
Alguém como uma
contradição antagônica
num mar de
contradições
não-antagônicas
Alguém se afogando
na ganga mística
da avenida no ocaso
se despedindo do céu
apaixonado pelo céu
Alguém em cujas
esponjas cerebrais
jamais se fundariam
as bases inabaláveis
de um sólido império
Alguém que precisa
a todo custo
falar com você
Mas você é tão distraído
entra no carro
ou no cinema
ou no elevador
escapa
sem nem
saber que
escapa
do rodamoinho
no fundo
do caldeirão de
feiticeira
da história.
(ADENDO AO POEMA O CÉU DO RABI
O branco-azul
do teto
e das paredes
da sala
onde as
crianças
aprendem
a ler
é tudo
quanto
— por ora —
podemos
vislumbrar
do céu
do Rabi.)