Número 40

8 de Junho de 2024

O JOGO DAS NUVENS

O dedal

HENRIQUE LOFF SILVA

Para a Constança


Conhecem este episódio dois ou três amigos, outros tantos familiares próximos. O receio de me tomarem por impostor, ou a vaga sensação do ridículo, impediram-me de o relatar a mais pessoas. Em boa verdade, a meia-dúzia de interlocutores a quem contei esta história não me levou a sério. Incrédulos, viram nela uma fantasia, uma invenção inútil sem outro propósito senão o de causar o espanto. Concederam-me, portanto, uma gargalhada, um encolher de ombros ou o esboçar de um sorriso condescendente. Como poderei eu, caro leitor, atestar a veracidade do sucedido?

Regressava da escola onde aprendia as primeiras letras. Sentia uma excitação invulgar — o dia tinha sido promissor. Talvez tivesse ganho um jogo ao berlinde, ou talvez uns olhos inquietos de uma face sardenta me tivessem lançado um convite inesperado. O sol de Outono tinha apagado as nódoas de água da chuva no páteo da escola. Pouco depois da esperada autorização, invadiram-no os pequenos reclusos da instituição, que logo desataram aos gritos e em desenfreadas correrias, durante a hora do recreio da tarde. Graças a um duelo de espadachins que logo se resolveu a punho, sofri um violento puxão que rompeu o botão da alça direita das jardineiras que trazia debaixo do bibe. Envergava a mazela com uma espécie de orgulho.

Ao fim do dia encontrava-me num lugar muito diferente. Um reino que dominava e conhecia como as próprias mãos substituía a atmosfera da escola-prisão — estava em casa dos meus avós. Jamais esquecerei esta casa. Posso reconstruí-la inteiramente, sem nada me faltar. De um imenso corredor, de um meridiano fundamental que a atravessava de um pólo a outro, derivavam para a esquerda, para oeste, a copa e cozinha, as duas salas e os quartos. Depois de me ter desembaraçado da mochila e do bibe, quis ir lançar nessa longa pista um automóvel movido por um belo sistema propulsor a ar comprimido. Alguém notou a alça das jardineiras à banda. Não muito tempo depois, avisavam-me que a minha avó me esperava na cozinha para coser o botão.

Atravessei o corredor, impacientemente, a caminho da cozinha. Um excesso de euforia, próprio dos dias felizes, mantinha-me buliçoso e insolente. Entrei primeiro na copa, aos pulos. Ela estava sentada num pequeno banco; na mesa de fórmica achava-se poisada a caixa de costura. Disse para me aproximar, pois podia coser o botão sem eu ter de despir as jardineiras. Recusei-me e continuei a fazer cabriolas, entre gracejos e esgares idiotas. O amor que me tinha fez-lhe sorrir os pequenos olhos oblíquos. Permaneci desordeiro e ela, indulgente, deixou-me estar. Resolvi roubar o dedal da caixa de costura. Quando me avisou, já sem sorrir, para o devolver, foi então que cometi um desaforo intolerável. Afastei-me e arremessei o dedal com toda a força, não contra ela, que estava à minha frente, mas para o lado, na direcção da bancada da cozinha. Sei que o projéctil ricocheteou (num dos azulejos da parede?, na porta do frigorífico?, na pia de mármore?) e que, um instante depois, vi a minha avó rodar um dos pulsos que tinha apoiado nos joelhos. Ambos verificámos, então, que o dedal tinha vindo alojar-se, milagrosamente, no indicador da sua mão esquerda. Nesse preciso momento o tempo parou. Olhámo-nos, em silêncio, sem mexer um músculo. Nada dissemos um ao outro: tínhamos pressentido a pura contingência das coisas. E nada havia a dizer, na verdade. Aproximei-me da minha avó e ela, mudando o dedal para o anelar da mão direita, coseu o botão à alça das jardineiras. Nunca mais falámos no assunto.

Eis o que sucedeu, tal como o empobrece, ou como o depura, a memória. O caso comporta, no entanto, uma certa metafísica. Imaginemos, por exemplo, que o dedal tinha ido parar a um centímetro do pé da mesa, ou que tinha ido aterrar na fruteira. Alguém veria aí algum prodígio? Tais acontecimentos, temos de o reconhecer, seriam tão improváveis como o que, de facto, ocorreu. Ingénua estupefacção a dos que vêem aqui um acontecimento extraordinário. Se este é um acontecimento extraordinário, então, todos os acontecimentos são extraordinários. Com efeito, é bem possível que assim seja.

Semelhantes casos talvez nos levem a considerar a imensa e contínua teia de eventos que compõem o universo. Se a minha avó se tivesse zangado o dedal teria permanecido quieto e estes parágrafos não seriam escritos. Portanto, uma qualquer decisão tem implicações imprevisíveis. Uma moeda perdida na praia pode precipitar-nos na morte; o bocejo de um mendigo pode retardá-la. Os mais indefinidos eventos podem ter maravilhosas e cruéis consequências — apercebemo-nos da suprema indiferença do acaso. Às suas incessantes ramificações entregamos, enfim, a nossa esperança e o nosso terror. Mas talvez achemos consolo na ideia de que um demiurgo tenha urdido o universo em todos os seus eventos, em todas as suas sequências e ramificações. E talvez ainda na ideia de que o urdiu infinitas vezes, nas suas infinitas possibilidades. Numa dessas tramas os homens não inventam a escrita; noutra nem sequer existem; noutra, mais auspiciosa, o leitor aprova este texto; noutra, deplora-o, vendo nele o produto de uma miserável contrafacção; noutra, encontro outra frase para lhe chegar ao fim…