Passou muito tempo desde que me propus a dar o flanco num gesto de atrevimento para ver se acertava em cheio no dorso do animal distraído que montamos. Sabia, à partida, que nesse gesto arriscado podia ser eu, no contra-ataque, a sair golpeado, quiçá irremediavelmente, desse confronto constante com algo sempre maior e mais poderoso que nós. Como leitor que escorrega na escrita, olho para trás e reconheço o traçado que pontuou uma decadência produtiva, um acumular de erros sobre erros ― cada frase escrita foi um novo erro ― de tal maneira que, recuando de costas como quem se afasta de um grande edifício para o ver na totalidade, deparamo-nos, calmamente, com uma silhueta estranha, disforme, absurda.
Mas se a premissa desta coluna desculparia de antemão qualquer resvalo estético ou moral, não significa que os erros se tornem menos nocivos ou que as palavras se salvem apenas por serem palavras (e não apenas palavras). Olhando para trás, o que se depreende da sucessão de gestos desastrados é que a escrita permite ir atrás de alguma coisa que, de alguma forma, escapa por entre a espuma dos dias e nunca se detém com a serenidade necessária para ser entendida. E se, muitas vezes a sensação de que a escrita pode ajudar a resolver ― porque descobre, destapa ― um qualquer tipo de alvoroço, não será porque determinado texto fixa ou esclarece o corpo do que é dissecado, mas sim porque através da forma e das suas nuances tomamos consciência da efervescência violenta de um mundo difícil de contemplar. Só assim, entrando no estilo e esquecendo, por momentos que seja, o seu teor, se torna possível desenhar um princípio de objecto, uma peça frágil e incompleta mas, ainda assim, uma hipótese de encantamento.
Também por isso, cada texto constitui em si uma aproximação a algo que intuo com cada vez mais força: a de que há uma forma comum que pertence às coisas e que não se distingue unicamente pela palavra, pela música, pela fotografia, pelo desenho, mancha ou cor. As ideias, ou, se quisermos, as imagens, imiscuem-se no labor de cada pedaço de envolvimento com o mundo, não olhando apenas a técnicas e suportes, mas principalmente à matéria infinitamente mais densa que reside no equilíbrio entre aquilo que vemos e o que nos olha, aquilo que apontamos e o que nos atinge, o que tememos e o que suportamos. No fundo, se é no momento que o braço armado fere a imagem que nos apresentamos mais vulneráveis, é porque essa imagem sangra, transfigura-se, reencarna. Ao adoptar outras configurações, saltando de corpo em corpo, faz com que cada vitória dure apenas o primeiro sorriso. Porque nada do que procuramos permanece, nem sequer na audácia das palavras, resta encontrar a melhor maneira de ler. Não há nada que impeça um nevoeiro de Turner de cobrir uma madrugada de insónia. Não há melodia tão subtil que faça esquecer que Cohen escreveu. As imagens contaminam e erram, e quando erram despenham-se num novo início. O rio secou, cantou o deserto! Inicia-se aí um novo texto, actualizando a constelação. E tudo prossegue pertencendo a uma cadeia de actualizações constantes, que sopram de um lado pousando noutro, arrastando consigo essa carga sensível que nos transporta até ao próximo abalo.
Assim, julgando-me no encalce de um segredo escondido na cidade, encarnando o caçador, gostaria de encerrar esta coluna com o anuir tímido e sincero de um êxito modesto: ter conseguido, com o esforço de cada frase como o de cada passo, revelar a existência da forma ― e não a forma ― que prova, precisamente, que entre mim e vós tudo se perde na escrita, e se reabilita na linguagem.
Nota final:
O facto de os textos predecessores terem partido sempre de uma experiência, irritação, deleite, desilusão ou estranheza do autor num movimento apontado ao leitor como seu espelho, não significa que estes ossos habitem na categoria do biográfico. Se não há maior realidade que o ficcionado é porque nada do que foi escrito sobreviveria de outro modo, ou seja, nada sobrevive sem o leitor.