Propuseram uma crónica a alguém que escreve anacronicamente. Não porque desdenho da espuma dos dias mas porque ambiciono fixar em texto a dificuldade e a importância das não-actualidades, mesmo que isso aconteça a partir da urgência informativa do crime do dia. Partindo da incerteza que transportamos desta altura da vida, arrisco-me a dizer que o presente se tornou impossível, que o passado não interessa senão à memória (e eu, prezando muito a história e sobretudo as suas reescrições, não possuo as competências ou o rigor com que o praticar), e tampouco pressionarei o futuro como mote, que sendo o nosso destino, a nossa fatalidade, só existirá aberto na ansiedade das capas dos jornais pela manhã e não me caberia a desfaçatez de vos estragar os sonhos.
Sobra uma espécie de lugar entre os conceitos que perfilam as edições mais corriqueiras: o noticioso, o ensaístico, o profético. Um lugar ainda em construção. O desafio é grande porque se pressupõe uma disciplina que tenho tido em absorver as sombras e as esquinas das minhas viagens a pé, expõe ao mesmo tempo a minha dificuldade em esclarecer a relutância de estacionar um carro à porta. Portanto, daqui não sairá a vontade de uma rotina ou de uma atenção diarística, mas provavelmente a necessidade hesitante de um conjunto de acasos que, constantes e emparelhados, de juntas abertas, me motivam a aceitar a assiduidade da escrita.
Volto a esse anacronismo (também apontado como defeito cronológico) que vai carimbar esta coluna: às vezes sobre coisas ultrapassadas, outras sobre objectos que caíram no desuso dos dias, tentando sempre escapar às ideias mortas, ou, remodelando esta atitude, tentando recuperar os cadáveres que se vão decompondo na cidade; ora enquanto desleixos; ora enquanto corrupções; quiçá uma ou outra beleza que se deixou escapar por aí. Porque haverá sempre algo a dizer sobre o que permanece desactualizado e que ocupa os lugares em que vivemos. Permanências tímidas, forças arrebatadoras, noções prementes que nos unem no agrado ou na fúria da cidade. Sobretudo, uma vontade de ressuscitar para o debate, seja ele no espaço público ou privado – ou mesmo na intimidade de uma cama – o apetite pelas coisas mais sensíveis, que nos abalam ou nos elevam, e que merecem ser reactivadas: a arquitectura, o cinema, e, porque não, o amor? Para tudo isso será preciso mais do que imagens vãs e cartazes colados à janela. E mais do que anúncios que nos vão poluindo sem darmos conta, será preciso a denúncia, num tom adequado, que provém de um atrevimento que fui buscar a um termo antigo:
O desplante, vem de uma variante de equilíbrio de um movimento de combate. Na esgrima traduz-se no momento em que o peso do corpo recai sobre o pé esquerdo quando a arma está na mão direita. O momento em que o corpo desafia a gravidade, fazendo do instante do desequilíbrio o ímpeto astucioso. A falta de vergonha necessária para desferir o golpe é ao mesmo tempo uma suspensão vulnerável e a determinação indispensável para o triunfo. Nesta dança belicista, tanto se arriscará o êxito da proposta quanto o ridículo exposto ao contra-golpe.
Assim, contem com esta coluna para: a) segurar uma viga que parece em balanço, b) contemplar o amontoado de elementos construídos que cruzamos sem pensar, c) hipostasiar, d) especular o que seria do mundo se fôssemos todos um pouco mais atrevidos no flirt. O desplante será essa suspensão do tempo do olhar, como no metro com aquela mulher com quem casaríamos imediatamente na próxima paragem, ou como no templo que esperou quinhentos anos pela nossa fotografia, mas também na ousadia de irmos além do que é aceitável. De saber o quão precipitado seria casar com o encaracolado dourado de um cabelo-delírio, mas não deixar de chegar a casa desiludido e aceso. De fazer de um templo a nossa eternidade, sabendo que amanhã teremos que ir ao talho e ao multibanco antes que feche.
Aqui, ousaremos juntos porque, se alguém escreve, outrem falhará o que está escrito. E dessa amplitude da oscilação, que se anuncia como objectivo, reclama-se a tolerância ao desafogo e à parcial incoerência dos elogios e das irritações que vos irei propor nos próximos tempos. Enfim, comprometo-me neste espaço a não ceder levianamente ao consenso. E contando que a liberdade possa ultrajar, peço desde já que me desculpem – sem esperar do leitor o pejo inevitável da afronta – este tamanho desplante.