Tenho uma vaga memória da casa dos meus avós paternos. A velha nespereira à entrada do pátio, dois quartos — um para o casal e outro para os quatro filhos —, alguns móveis antigos, a lareira que não me recordo de algum dia ter visto acesa. Era ali, numa cozinha escura, que cada sardinha era dividida por duas pessoas.
O meu pai contou-me várias vezes. Demasiadas vezes. Para que eu acreditasse. Para que não julgasse ser impossível. Os pés descalços feridos pela geada a caminho da escola, a comichão causada pelas frieiras nos dedos, o banho ao domingo na bacia de latão. O primeiro casaco que levou a um baile da terra, costurado a partir de um saco de serapilheira — e tão bonito que ele ia.
Contou-me da infância mutilada aos nove anos para “servir” um lavrador rico que lhe dava dormida e alimento. Mas no mesmo lugar onde crescia a revolta, estranhamente havia espaço para a felicidade. Os meninos viviam em bandos, jogavam à bola, subiam as árvores, sorviam os frutos acabados de colher. O dia inteiro entregues a eles próprios.
Era um país entristecido em que grande parte da população não sabia ler nem escrever, em que a maioria das casas fora da cidade não tinha esgotos, luz ou água canalizada.
Aquele país cinzento nunca coincidiu com a juventude e com a cor que o meu pai quis dar aos seus sonhos.
Numa noite fria de Dezembro deu “o salto” para França. Para que a vida não fosse a mesma, para contrariar o destino, para vencer a pobreza. Voltaria, anos depois, na noite da Revolução dos Cravos em Abril de 1974. Ao som de “Grândola, Vila Morena”.
O meu pai era contra o regime, mas foi subindo a pulso. Uma vida inteira a trabalhar, o que nos roubou tempo e palavras. Muitas vezes apeteceu-me deitar a cabeça naquele colo, mas não o encontrei. Mas foi com ele, o meu pai, no lugar onde cresci e onde cheirava a terra molhada, que recebi os melhores ensinamentos — a honestidade, o valor do trabalho, a simplicidade.
Aprendi também coisas que nunca deveria ter aprendido. Coisas que ficaram de 40 anos vividos na ditadura.
Aprendi a esconder o meu corpo porque as mulheres (irónico, não é?) da aldeia falavam. Aprendi a dar “não dar confiança” aos rapazes da minha idade. Aprendi a bordar — ponto cruz, meio ponto, arraiolos. A ser aprumada e “honrada”. A pedir desculpa mesmo sabendo que a razão esteve sempre do meu lado.
Aprendi que a indiferença dói muito mais do que um grito. Que as palavras podem ser feridas que ficam por cicatrizar uma vida inteira.
Esta vida é antiga, mas é importante que seja presente. Porque há o dever de contar.
Ontem, quando estávamos sentadas à mesa, ela começou a trautear o “Grândola, Vila Morena” que iria apresentar na escola. Uma peça “escrita” por ela sobre o derrube da ditadura. Olhei-a com olhos de espanto.
Ela não saberá (talvez tenha percebido), o caminho que se percorreu até aqui.
Não saberá que antes dela — pouco antes de mim — tantos lutaram para que os filhos pudessem caminhar. Alguns não conseguiram.
Há o dever de contar. Várias vezes. Demasiadas vezes. E de cantar aquela madrugada de que somos todos filhos. “Em cada rosto igualdade”.
Ela saberá através do sorriso firme do avô.